Literatura: conceituar é definir?

Conceitos de Literatura
por Breno Rodrigues de Paula

Definir é demarcar limites, formatar enquadramentos para que sirvam perpetuamente. Mas, como definir algo que é Arte dinâmica? Na tentativa de definição "absoluta teríamos que considerar questões inerentes à estética. E, portanto, questões que não são exatas e singulares, e sim conceituais e relativas. Definir literatura, é definir uma Arte, como a Arte não tem definição, formulam-se conceitos de literatura. Vários conceitos de literatura e literariedade foram formulados no decorrer da atividade crítica literária humana. Conceitos que tentam definir literatura, e quando, e com quais características e elementos cria-se o texto literário. Muitas vezes, o conceitos são antagônicos entre si ou se complementam ao longo da história da literatura: de Aristóteles ao romantismo, passando pelo conceito moderno e pós-moderno.
Aristóteles dipõe-se a examinar a natureza e os atributos diferenciadores da literatura. O método de Aristóteles consiste no exame de fenômenos observados, tendo em vista anotar suas qualidades e feições. Sua preocupação é, sobretudo, ontológica, ou seja, descobrir em que de fato consiste literatura. Ele expõe sua descrição disposta de tal forma que: a análise da natureza da literatura compreenda suas funções. Como, por exemplo, a tragédia que tem a função de causar "katharsis": temor e piedade, nesta ordem sucessiva.

De acordo com Aristóteles, todas as modalidades da literatura grega envolvem a "mimesis", ou seja a imitação, ou transposição de uma cena primeira, orientada, para uma cena segunda, transposta. A mimesis é a translação do "mundo" físico e metafífico para um "mundo literário". Na literatura, podem ser representados aspectos e situações reais e imaginários, através da esclha de um meio ou processo: epópeia, tragédia e a comêdia. Vale ressaltar também que, segundo Aristóteles, o texto literário se assimila ainda por estar em relação com as três categorias fundamentais do prazer estético: a "poiesis", a "aisthesis" e a "catharsis".

A literatura, segundo o conceito romântico, é a melhor expressão do melhor pensamento através da escrita, ligando-se ao reino das sensações. Na vertente romântica, privilegia-se as emoções, a expresão livre dos estados afetivos e algum desvio da norma padrão em favor dos sentimentos e da liberdade. Para essa visão, a literatura aparece co o algo que se relaciona com as idéias de gênio e de inspiração. Ela é concebida em suas relações com a nação e com sua história. A literatura, ou melhor as literaturas, são, antes de tudo, nacionais.

Os formalistas russos, no início do séulo XX, deram o uso propriamente literário da língua. As propriedades dos textos literário recebem o nome de "literariedade". Jakobson ressalta que: "o objeto da literatura é a literariedade", ou seja, o que faz uma determindade obra, uma obra literária. Para ele, a literatura é uma violência organizada contra a fala comum. Em sua essência, o Formalismo foi a aplicação da linsguística ao estudo da literatura. Os formalisatas passaram ao largo da análise do conteúdo literário e se dedicaram à forma. Era a forma que determinava o conteúdo. A literatura renova a sensibilidade linguística através de procedimentos que desarranjam as formas habituais e autômaticas da sua percepção. Logo, a literatura é caracterizada com experimentação dos "possíveis da linguagem".

O formalismo russo influenciou o conceito de literatura do "Circulo de praga". A inovação está em definir a literatura como fato semiótico. A teoria da literatura foi inserida no quadro mais amplo de uma teoria da comunicação orientada para um ponto de vista semiótico. Elaborou-s, simultaneamente, a distinção saussirriana entre a norma existente (língua) e os enunciados individuais (fala). De acordo com estruturalismo tcheco, o texto literário é, ao mesmo tempo, um signo e uma estrutura de signos. Os checos também ressaltavam a importância da receptividade (fundamento teórico da teoria da receptividade). Na pluralidade das possibilidades de interpretação e recepção baseiam-se na complexidade da obra.

Segundo o conceito "New criticism", que surgiu nos Estados Unidos na década de 30 do século XX, a literatura é uma série de "monumentos" à qual uma obra nova pode ser adicionada. Os adeptos desta corrente apóiam-se na distinção tradicional entre experiência estética e interesses práticos. Isolam o texto de outros textos e também consideram a importância do leitor para a receptividade da obra literária.

Os conceitos de literatura, desenvolvidos desde Aristóteles até a atualidade, demonstram diversos aspectos e funções da literatura. Cada conceito privilegiou determinados aspectos ou funções: Atistóteles desenvolveu o seu conceito através de uma análise descritiva e funcional da obra; os românticos atribuem á obra literária o caráter individualista do autor e o objeto mais valioso do processo literário; os modernistas (Formalistas e Estruturalistas) ressaltavam a importância da linguística e do leitor na definição do conceito de literatura, através da "teoria da receptividade".

Para formulamos um conceito de literatura é necessário unificar, de forma coerente, os conceitos de literatura, ou melhor de literaturas, desenvolvidos durante toda a atividade crítica literária da história da literatura, atribuindo-lhe valores equivalentes, com o intuito de formar um triângulo isóceles, que representaria as partes constituintes da literatura em seu processo literário. A literatura não é uma arte estática ou um monumento. Sua criação é feita através de um processo criativo, estético e perceptivo dinãmico que interagem com a obra, com o autor e com o leitor, formando aquilo o que chamamos LITERATURA.

Marcadores: Estética literária, Literatura

Alteridade

Facto ou estado de ser Outro; diferição do sujeito em relação a um outro. Opõe-se a identidade, mundo interior e subjectividade. Este tema aparece com alguma insistência nos mais recentes estudos pós-coloniais, feministas, desconstrucionistas e psicanalíticos, e é também tratado no dialogismo de Bakhtin. A questão da alteridade (ing. otherness; fr. alterité; al. Anderssein) corre o risco de se tornar simplisticamente universal, no caso de considerarmos o Outro como uma categoria omnipresente, porque tudo está em oposição em relação a alguma coisa ou a alguém. É necessário delimitar a aplicação do conceito e, de preferência, pelo menos no que toca à literatura, considerá-lo apenas nas relações poéticas, dramáticas e nais que se abrem nos textos literários.

Entre 1918 e 1924, Bahktin escreve diversos ensaios cuja tema central é a relação entre o eu e os outros. O eu só existe em diálogo com os outros, sem os quais não se poderá definir. O processo de autocompreensão só se pode realizar através da alteridade, isto é, pela aceitação e percepção dos valores do Outro. O autor literário segue esta dialéctica: é uma entidade dinâmica que estabelece relações com todas as entidades textuais. Outros pensadores do século XX vão prosseguir o inquérito complexo da alteridade: Heidegger, Sartre, Lacan e Derrida.

Na sua concretização literária, consideremos a questão da alteridade segundo dois vectores fundamentais (entre outros possíveis, se pensarmos que a questão é inesgotável): 1) O Outro como Deus; 2) O eu como Outro.



1) Lacan introduz a escritura do Outro em oposição ao outro, que é simétrico do eu imaginário. O ensaio central de Lacan sobre a identificação do Outro com Deus é “Deus e o gozo d’ A mulher”, texto original que pertence ao Seminário XX de Lacan (1972-3), com o título Encore (“God and the Jouissance of The Women”, trad. inglesa de Jacqueline Rose: Feminine Sexuality: Jacques Lacan and the École Freudienne, editado por Juliet Mitchell e Jacqueline Rose, Macmillan, 1982, pp.137-148). O Outro não pode ser dito num sentido. Não há uma explicação gratuita que o defina de imediato. Ele é o grande Outro da linguagem, que está para a linguagem como o Dasein está para o ser: aí - estar/ser-aí, eis a natureza do Outro, que se interpõe como terceira entidade em toda a dialéctica ou diálogo. O Outro é, pois, aquele ser fantástico que se agita dentro de mim. É o Outro do desejo como inconsciente. Por isso o Outro é o verdadeiro dado inicial e não o sujeito. Concretizemos com o romance de Eça de Queirós, O Crime do Padre Amaro. O estado neurótico de Amaro define a sua angústia permanente perante a presença do Outro, que tanto pode referir-se à Mulher como a Deus. O Crime do Padre Amaro é não só um ensaio sobre o desejo, mas também um estudo sobre as possibilidades dialécticas do desejo enquanto pulsão sexual e enquanto pulsão mística (no sentido lacaniano). O Outro é também Deus, o Deus determinado desde sempre pela sexualidade masculina, mas é mais rigorosamente o lugar onde se realiza o sujeito que fala com aquele que é suposto ouvir (Deus). Quando ainda só suspeita que Amélia devia gostar dele, Amaro olha-se ao espelho e descobre não só o desejo do corpo da mulher, mas em igual medida significativo, descobre o seu próprio corpo, toda a dimensão do seu próprio corpo que até aí estava dividido pelo fantasma da castração: “E passeava pelo quarto com passadas de côvado, estendendo os braços, desejando a posse imediata do seu corpo [de Amélia]; sentia um orgulho prodigioso: ia defronte do espelho altear a arca do peito, como se o mundo fosse um pedestal expresso que só o sustentasse a ele!” (O Crime do Padre Amaro, Obras Completas de Eça de Queiroz, vol. 4, Círculo de Leitores, Lisboa, 1980, p.125).



2) Na Filosofia da Natureza, Hegel sustentou que a Ideia é considerada na sua alteridade (Anderssein), no tornar-se exterior a si própria no mundo natural. Esta concepção da Ideia alimenta a doutrina das Odes Modernas de Antero, profundamente racionalistas tal como expressamente se afirma no poema "Luz do Sol, Luz da Razão (Resposta à poesia de João de Deus 'Luz da Fé')" que termina com estes dois versos: “Por isso vos estimo... / Tu, sol, e tu, razão! (Odes Modernas, 3ªed., Ulmeiro, Lisboa, 1989, p.84). A percepção subjectiva do Outro, condição maior para a compreensão da alteridade, passa por este tipo de relação racional do sujeito com o Outro. Criada esta condição o homem está preparado para a consciência de si, essencial à compreensão do Outro como Deus. O ensaio A Bíblia da Humanidade de Michelet, escrito em 1865, tinha Antero 23 anos, tem afinidades com as teses de Feuerbach, a começar pelo princípio socrático de que dentro do homem existe um Deus desconhecido, repetido por variantes ao longo do ensaio. Sendo a principal tese de A Essência do Cristianismo, de Feuerbach, o princípio de que a religião não é mais do que "a consciência que o Homem tem de si mesmo considerando-se como outro", não podemos deixar de ver no postulado anteriano de que o homem é um Deus que se ignora a mesma redução de Deus à essência humana.



3) Não menos complexa é a tentativa de reduzir a alteridade a um princípio de identidade. Os poetas modernistas são hábeis neste tipo de jogo de destruição da barreira psicológica entre o eu e o Outro e muitos fizeram dessa relação o cerne da sua poesia. Está neste caso Mário de Sá-Carneiro, cujo entendimento da alteridade é investigado em «Eu-Próprio o Outro» (1913), novela do conjunto Céu em Fogo. O paroxismo do drama das relações entre o eu e o Outro pode-se ler a partir da doutrina dos eleatas, segundo a qual o mundo não passa de uma aparência vã: "Mas, coisa curiosa, até hoje nunca o vi chegar. Quando dou pela sua presença, já ele está em face de mim." A presença do Outro é sempre uma presença invisível. A única aspiração consiste na possibilidade de encontrar a unidade entre ambos, uma unidade parmenidiana capaz de desvelar o Ser uno e imutável. O problema da intersubjectividade parece pronto a resolver-se com a revelação do significado íntimo do sentimento do eu para com o Outro, que é um sentimento de ódio. De certa forma, "Eu-Próprio o Outro" prediz a «A Cena do Ódio» de Almada Negreiros. Em ambos os textos, o ódio é ódio a todos os outros num só, segundo uma regra que Sartre investigou no seu O Ser e o Nada. O que se procura atingir é o princípio geral de existência de outrem para reconquistar a liberdade ameaçada do eu, no fundo, para descobrir a sua ipseidade: “Em frente dele reconheço o que eu quisera ser: o que eu sou erradamente. Nele, não me sobejaria. (Mário de Sá-Carneiro, Prosa, vol.2, Círculo de Leitores, Lisboa, 1990, p.352). O Outro existe apenas para eu saber aquilo que não devo ser. Servir-me-á para corrigir o erro de ser-eu-deste-modo-errado. Como afirma Sartre, na sua teoria sobre a alteridade: "... o ódio é ódio a todos os outros num só. O que eu quero alcançar simbolicamente ao perseguir a morte de um tal outro, é o princípio geral da existência de outrem. O outro que odeio representa afinal os outros. E o meu projecto de o suprimir é projecto de suprimir outrem em geral, ou seja, de reconquistar a minha liberdade não-substancial de para-si.." (O Ser e o Nada, trad. de G. Cascais Franco, Círculo de Leitores, Lisboa, 1993, p.412).

Uma quadra de Mário de Sá-Carneiro encerra toda uma teoria de desconstrução da alteridade: “Eu não sou eu nem sou o outro, / Sou qualquer coisa de intermédio: / Pilar da ponte de tédio / Que vai de mim para o Outro.” (Poesias, Ática, Lisboa, [1991], p.94) Como no mito de Platão, o Poeta é esse homem obrigado a viver agrilhoado de costas para o mundo. Sá-Carneiro só antevê uma forma de triunfar perante as sombras do mundo dadas pela luz do sol: através do outro, ser para-si. A aporia fundamental do poema envolve uma só palavra: "pilar". O que é que significa o ser-entre, que é esse ser-qualquer-coisa-de-intermédio, ser o pilar da ponte entre Mim e o Outro? Pode haver algo entre o ser eu e o ser outro? O drama da intersubjectividade (e da alteridade) em Sá-Carneiro reside no facto do Poeta ter acreditado existir a possibilidade de uma relação sublime e positiva de um sujeito com outro sujeito, isto é, de um eu destroçado em busca de um outro eu restituído à sua harmonia por um qualquer demiourgos. Como Sartre, aceitamos existir apenas a relação sujeito-objecto, em que o meu olhar transforma o Outro em objecto ou então sou transformado em objecto pelo olhar do Outro.

DIALOGISMO; exotopia; IDENTIDADE; SUBJECTIVIDADE

Bib.: Carlos Ceia: De Punho Cerrado: Ensaios de Hermenêutica Dialéctica da Literatura Portuguesa Contemporânea (1997); Iris M. Zavala: “Bakhtin and Otherness: Social Heterogeneity”, Critical Studies, 2, 1-2 (1990); Michael Theunissen: The Other: Studies in the Social Ontology of Husserl, Heidegger, Sartre, and Buber (2ª ed., 1984); Steven Earnshaw: “Alterity: Martin Buber’s ‘I-Thou’ in Literature and the Arts”, in The Direction of Literary Theory (1996); Thomas Docherty: “Postmodern Characterization: The Ethics of Alterity”, in Edmund Smyth (ed.): Postmodernism and Contemporary Fiction (1991).

Carlos Ceia

A meta do poeta: Metáfora

Etimologicamente, o termo metáfora deriva da palavra grega metaphorá através da junção de dois elementos que a compõem - meta que significa que significa "sobre" e pherein com a significação de "transporte". Neste sentido, metáfora surge enquanto sinónima de "transporte", "mudança", "transferência" e em sentido mais específico, "transporte de sentido próprio em sentido figurado".

Figura de estilo que possibilita a expressão de sentimentos, emoções e ideias de modo imaginativo e inovador por meio de uma associação de semelhança implícita entre dois elementos. De facto, e tendo como base o significado etimológico do termo, o processo levado a cabo para a formação da metáfora implica necessariamente um desvio do sentido literal da palavra para o seu sentido livre; uma transposição do sentido de uma determinada palavra para outra, cujo sentido originariamente não lhe pertencia. Ao leitor é exigido no processo interpretativo uma rejeição prévia do sentido primeiro da palavra, para a apreensão de outro(s) sentido(s) sugerido(s) pela mesma e clarificada pelo contexto, na qual se insere.

A metáfora tem sido objecto de variadas e inesgotáveis reflexões a nível filosófico, linguístico e estético ao longo da história e muito haverá, certamente, ainda a dissertar sobre esta matéria, cuja complexidade requer uma re-análise constante de teorias que têm vindo a ser desenvolvidas. O estudo sobre o conceito de metáfora deve, por conseguinte, incidir na sua evolução enquanto fenómeno social e histórico, em conjunto com as teorias relativas à linguagem. Historicamente três teorias fundamentais são visíveis no que concerne o tema da metáfora - a visão clássica, com figuras representativas como Aristóteles, Cícero e Horácio; a visão romântica, à qual Coleridge deu um importante contributo, e finalmente uma visão moderna com I. A. Richards e Paul Ricoeur.

Aristóteles foi o primeiro a abordar o tema da metáfora, identificando-a como termo genérico que abarca todas as figuras retóricas em geral. Por conseguinte, ao falar de metáfora, refere-se simultaneamente, e em sentido lato, a toda a actividade retórica.

Nesta acepção, Aristóteles na Poética (capítulos 21-25) e na Retórica (livro III) designa metáfora como "o transporte a uma coisa de um nome que designa um outro, transporte quer do género à espécie, quer da espécie ao género, quer da espécie à espécie ou segundo a relação de analogia".

Segundo esta definição de Aristóteles, podem identificar-se diferentes traços identificativos da metáfora, os quais influenciaram e regularam, até certo ponto, a história poética e retórica da metáfora, pelo menos até ao século XVIII.

Destaca-se de imediato da definição aristotélica que metáfora assenta no nome ou na palavra. Enquanto elemento essencial na perspectiva aristotélica, o nome é objecto de uma transformação ou uma deslocação de um nome para outro. Este movimento de transposição implica necessariamente um desvio ao uso vulgar e corrente do nome próprio e pressupõe concomitantemente um pedido de empréstimo a outro nome, cujo significado será atribuído ao primeiro. A metáfora surge, por consequência, como uma substituição de uma palavra própria por uma palavra em sentido figurado.

Aristóteles propõe na definição acima citada quatro tipos diferentes de metáfora.O primeiro tipo de metáfora - de género a espécie - consiste em estabelecer uma relação de encaixe entre género e espécie. Assim, tomando um exemplo canónico da filosofia o género "mortais" compreenderia a espécie "homens" por meio de uma relação lógica. A palavra "mortais", estaria, então em vez de homens. O segundo tipo de metáfora - de espécie a género - baseia-se numa relação lógica inversa àquela descrita para o primeiro tipo. O terceiro tipo, de espécie a espécie, assemelha-se mais genuinamente a uma metáfora pelo facto de implicar uma associação de semelhança entre dois nomes. Este tipo de metáfora é também conhecido como a metáfora dos três termos, implicando uma estrutura lógica entre três elementos - o termo metaforizante, o termo metaforizado e o termo de referência semelhante a ambos. O quarto e último tipo de metáfora proposto por Aristóteles é a metáfora por analogia ou por proporção - quatro termos estão interligados por pares e a relação entre os elementos em união é analógica. Deste modo A, B, C e D estão relacionados de uma forma que a relação de B com A é análoga à de D com C. Para a retórica pós-aristotélica, a metáfora por analogia ou por proporção constitui e identifica a "verdadeira" metáfora. Nela está patente uma relação analógica de semelhança entre duas ideias, uma das quais transfere determinadas características a outra que as adquire como suas.

Autores clássicos subsequentes como Cícero, Horácio, Longinus e Quintilliano reforçaram os pressupostos aristotélicos no que respeita o princípio do decorum patente na linguagem figurativa, e da qual a metáfora representa a forma mais nobre e essencial para o embelezamento da lingagem vulgar. A retórica clássica apresenta, porém, uma definição mais precisa e específica do termo, incluindo a metáfora na classificação genérica de tropos, que enquanto artifícios literários ou retóricos, consistem no emprego de palavras, cuja significação é diferente do seu significado literal e primeiro. Tropo, termo derivado do grego, é sinónimo de "desvio", "volta", implicando, neste sentido, uma mudança do sentido literal da palavra para um significado figurado. Como figura de estilo mais relevante dos tropos, a metáfora contém a estrutura básica que constitui a transferência, sendo a comparação, a sinédoque e a metonímia meras variações desse processo. Metáfora e comparação, enquanto tropos de semelhança, distinguem-se pelo facto de a comparação explicitar através da conjunção comparativa "como" o processo de transferência. A sinédoque, tropo de contiguidade, implica uma transferência da parte pelo todo, e do todo pela parte. Na metonímia, tropo de conexão, o nome de um elemento é transferido para outro com que ele está relacionado.

Neste âmbito, os tropos e a metáfora em particular, são eminentemente figuras discursivas, cuja função predominantemente é a ornamentação e o embelezamento do discurso. Assim, um discurso é tanto mais belo quanto maior for o recurso a ornamentos de linguagem que o enriquecem e o distinguem de termos considerados vulgares.

A metáfora é definida, segundo a retórica tradicional, como a figura que estabelece um ponto de semelhança entre dois termos que ocorre segundo um processo de transferência de significação própria de uma palavra para uma outra significação através da elipse do elemento comparativo. Metáfora equivale, neste sentido, a uma semelhança ou uma comparação abreviada em que a conjunção comparativa como é omitida.

A origem desta tradição provém de Quintiliano que em Instituição Oratoria refere que metáfora é, no fundo, uma comparação abreviada - "In totum antem metaphora brevior est similitudo". A explicação de Charles Bally no seu tratado de estilística enfatiza esta noção - "(...) a origem da metáfora (...) não é outra coisa senão uma comparação em que o espírito, vítima da associação de duas representações, confunde num só termo a noção caracterizada e o objecto sensível tomado como ponto de comparação". Esta tradição prevalece ainda no ensino tradicional que define metáfora com uma "transposição, por comparação, do significado de uma palavra para outra que inicialmente lhe não pertence".

A visão clássica no seu conjunto apresenta uma dissociação nítida entre a linguagem e a metáfora, que é apenas utilizada pela linguagem no intuito de alcançar um determinado efeito discursivo e expressar de modo mais nobre a realidade circundante. Até ao século XVIII a metáfora traduzia respostas compartilhadas colectivamente e o conjunto de relações analógicas apresentadas eram a priori estabelecidas.

A visão romântica acerca da metáfora surge como uma reacção às teorias defendidas em séculos anteriores. Na sua perspectiva, a metáfora não se pode reduzir ao seu efeito de ornamentação porque ela é antes de mais uma maneira de pensar e de viver, uma projecção imaginativa da verdade. A função essencial da metáfora reside, assim, na expressão da imaginação. Para Coleridge, o conceito de metáfora é definível como "imagination in action". A metáfora é, deste modo, indissociável da linguagem no seu todo, que por sua vez é essencialmente metafórica. O uso da metáfora intensifica uma actividade característica e inerente à linguagem.

A perspectiva do século XX aceita as ideias essenciais defendidas pelos românticos, nomeadamente a dissolução entre a linguagem, a experiência e o mundo real; o pensamento e o objecto descrito. Segundo I. A. Richards, a metáfora não constitui um modo excepcional de utilização da linguagem, mas antes o modo como a língua, repleta de conceitos e ideias metafóricas, funciona.

A retórica clássica tem sido alvo de críticas por parte de alguns autores contemporâneos, que vêem esta teoria, baseada exclusivamente na lógica, como excessivamente simplista e redutora. Wheelwright, de entre outros autores, critica a distinção clássica entre metáfora e comparação. Para Wheelwright a diferenciação entre estas figuras de estilo não assenta em critérios puramente formais ou gramaticais, mas antes na transformação semântica patente no processo de construção metafórica. Henri Suhamy salienta ainda que embora formalmente uma metáfora se apresente como uma comparação, ela é conceptualmente uma metáfora.

A noção de similitudo presente na metáfora e comparação não é, assim, suficiente para explicitar as diferenças conceptuais entre estas duas figuras de estilo, uma vez que a semelhança não implica uma transferência ou um transposição do sentido de uma palavra para outra. Do ponto de vista do receptor a comparação apresenta-se seguindo uma coerência mais lógica estabelecida entre os dois elementos, reiterada pela conjunção comparativa como. A metáfora, por seu turno, implica uma abstracção a nível da sensibilidade e da imaginação pela sua ruptura com a lógica discursiva e pela liberdade concedida ao emissor. A metáfora pressupõe, consequentemente, uma complexidade muito maior do que uma mera comparação abreviada. De facto, a metáfora poderá conter dois termos que reportam referências simbólicas dispares e/ou dissemelhantes numa tentativa de recriação do real exterior ou interior e não directamente comparáveis entre si.

Paul Ricoeur acentua a ideia que o conceito de transposição por semelhança é, de facto, uma substituição por denominação, na qual um termo designa outro termo figurado similar. Por conseguinte, a metáfora insere-se por exclusivo numa estrutura paradigmática e sincrónica. O processo de substituição necessário para a criação da metáfora, bem como a disponibilidade do termo primeiro e originário, reduz esta figura de estilo a um ornamento estilístico de informação nula.

Enquanto elemento essencial na literatura, a metáfora é também um recurso corrente na linguagem quotidiana, o que poderá provar que a sua função predicativa do discurso atribuída pela retórica clássica é, de facto, redutora e não corresponde ao recurso que dela se faz. Alguns autores, como Michel le Guerne e W. H. Urban referem que a metáfora satisfaz diferentes funções da linguagem, quer sejam aquelas desenvolvidas pela retórica tradicional, quer sejam aquelas propostas posteriormente por Roman Jakobsan.

A retórica tradicional distingue três funções da linguagem - docere, placere, movere. A primeira destas funções, docere, equivale à transmissão de informação lógica. Apesar de a imaginação constituir o ponto fulcral da metáfora, esta ao destacar uma característica dominante, permite pôr em relevo o elemento mais relevante para uma melhor interpretação da mensagem. Placere, a segunda função da linguagem, designa a função estética, que assume um papel ambivalente - ao mesmo tempo que enriquece o vocabulário e embeleza o discurso, procura captar o interesse do seu interlocutor. Por fim, movere, cujo sentido é definido como a persuasão, é também visível na figura metafórica. Uma mensagem persuasiva só alcançará o seu objectivo final através de um apelo à sensibilidade e à afectividade.

De entre as funções da linguagem apontadas por Roman Jakobson, destacam-se duas em particular - as funções emotiva e conativa. A função emotiva, centrada no emissor reflecte a expressão de sentimentos ou emoções que apenas a metáfora consegue reproduzir de modo original. O emissor procura compartilhar os seus sentimentos com o receptor; daí a metáfora abarcar também a função conativa, orientada para o leitor ou ouvinte que recebe e interpreta a mensagem.

Em suma, a metáfora não se restringe a uma figura ornamental do discurso, a uma exemplificação ou representação alegórica de uma vivência real como a retórica clássica parecia fazer crer. Várias propostas têm sido efectuadas no sentido de categorizar a metáfora. Assim, uma das propostas é a distinção entre metáfora comum, standardizada e elaborada. A metáfora comum é a palavra lexicalizada, que fazendo parte da língua não está ainda fossilizada no estádio da sua etimologia. A metáfora standardizada é utilizada como uma imagem pelo emissor e compreendida do mesmo modo pelo receptor. A metáfora elaborada é uma construção mais complexa, na qual a imagem se apresenta como tema condutor.

Distinguem-se commumente ainda dois tipos de metáforas - metáfora pura, também designada por metáfora in praesentia; e metáfora impura ou metáfora in absentia.

Designa-se de metáfora pura ou in praesentia, quando os termos presentes identificam elementos irreais ou imaginados, substituindo os reais. Ex:"Tais contra Inês os brutos matadores,/ No colo de alabastro, que sustinha/ As obras com que Amor matou de amores" (Camões). Define-se a metáfora impura, ou metáfora in absentia, quando o termo real é identificado com o termo metafórico. Ex: "Meu coração é um almirante louco que abandonou a profissão do mar" (Álvaro de Campos). Alguns autores apontam a classificação de metáfora orgânica e a metáfora telescópica, cujas significações se baseiam nos termos definidos por I. A. Richards - tenor e veículo. O termo tenor corresponde ao desvio de sentido que a palavra pressupõe, enquanto o termo veículo equivale à imagem que ilustra esse conceito de desvio. Na metáfora de tipo orgânico, também definida como estrutural ou funcional, o veículo (imagem) é simbólico e o seu tenor (sentido figurado) está implícito. Ex: "E debaixo desta aparência tão modesta ou desta hipocrisia tão santa, o tipo polvo é o maior traidor do mar" (Padre António Vieira). Na metáfora telescópica ou metáfora complexa, o veículo (imagem) de uma metáfora torna-se o tenor (sentido figurado) de outra metáfora. Ex: "Sou um guardador de rebanhos/ O rebanho é os meus pensamentos/ E os meus pensamentos são todos sensações" (Alberto Caeiro). A fácil aceitação da metáfora por um vasto número de indivíduos, bem como o uso recorrente que dela se faz, leva o falante a utiliza-la sem a percepção do cariz metafórico por detrás da expressão empregue no seu discurso. Uma metáfora inovadora e imaginativa torna-se, assim, uma metáfora idiomática, lexicalizada ou ainda morta. O falante já não recorre a esta figura de estilo como uma expressão de carácter metafórico, mas como um termo próprio da língua.

As metáforas mortas ou idiomáticas consistem numa palavra - "folha de papel", "perna da mesa"; numa frase - "As férias estão à porta"; numa frase feita - "os professores têm a faca e o queijo nas mãos"; em expressões eufemísticas - "não tomou chá desde pequeno"; e em provérbios populares - "quem vai ao ar perde o lugar". As metáforas mortas encontram-se em vários contextos da actividade do homem e da realidade quotidiana por ele vivida. No âmbito da religião são visíveis expressões como: "A vida é um inferno", "céu da boca", "és um anjo", "chorar como uma madalena", "foi para o céu", "espírito santo de orelha". A natureza assume também um papel vital neste tipo de metáforas - "fresco que nem uma alface", "maçãs do rosto", "separar o trigo do joio", "és um nabo". As expressões metafóricas com referências a animais revelam, por vezes, um tom pejorativo ou irónico - "estou depenado", "gato escaldado de agua fria tem medo", "são como o cão e o gato", "tem macaquinhos no sótão", "matar dois coelhos de uma cajadada".

Tropos, Comparação, Sinédoque, Metonímia, Alegoria, Imagem, Símbolo

Bib.: Andrew Ortony (ed), Metaphor and Thought (1979); Carlos J. Nunes Correia, "Ricoeur e a metáfora integral" in Revista da Faculdade de Letras (1986); C. Hugh Holman, William Harmon, A Handbook to Literature, s.d.; David Daiches, Critical Approaches to Literature (1981); Elyse Sommer e Dorrie Weiss (ed), Metaphors Dictionary (1985); Frank Lentricchia e Thomas McLaughlin, Critical Terms for Literary Study (1990); George Lakoff e Mark Johnson, Metaphors we live by (1980); Harry Shaw, Dicionário de termos Literários (1982); Henri Suhamy, As Figuras de Estilo, s.d.; Henrich Lausberg, Elementos de Retórica Literária, s.d.; Jacinto do Prado Coelho, Dicionário de Literatura, 2ª vol (1982); J. A. Cuddon, A Dictionary of Literary Terms and Literary Theory, s.d.; José Pedro Machado, Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa (1977); Júlio Martins et al, Aprender Português (1985); Leonel Ribeiro dos Santos, Metáforas da Razão ou Economia Poética do Pensar Kantiano, s.d.; Megan Perigoe Stitt, Metaphors of Change in the Language of Nineteenth-Century Ficiton (1988); Michel le Guerne, Semântica da Metáfora e da Metonímia, s.d.; Paul Ricoeur, A Metáfora Viva (1983); Sheldon Sacks, On Metaphor (1978); Terence Hawkes, Metaphor (1982); Umberto Eco, "Metáfora" in Enciclopédia Einaudi, Vol. 31 (1994).

Paula Mendes

Linguagem

Em Crátilo, de Platão (428-348 a.C), texto fundador, na filosofia ocidental, da reflexão sobre a linguagem, lemos este fragmento fulcral: “Socrate: Tu sais que le discours exprime tout (pan) et que sans cesse il fait circuler et meut tout, et qu’il est doublé, à la fois vrai et faux”. (Platon, 1967, p. 428). Nesse diálogo, três temas se entrecruzam o tempo todo: a justeza dos nomes (orthotes), a conveniência ou propriedade (euprepeia, prosekon) e a ignorância do povo (plethos) quanto à Verdade (episteme). “(...) A imperfeição da linguagem, tomada como mimese, ameaça as certezas do Saber, ao mesmo tempo que, vistos como mera conveniência, os nomes condenam a linguagem a bater-se, sem cessar e sem saída, contra o excesso e a ambigüidade do não-idêntico, ou seja, o duplo da linguagem, que não representa a essência do Real” (MUCCI, 2005, p. 36 ). Por seu turno, Roland Barthes (1915-1980), declara, no fascinante mosaico enciclopédico que se intitula Fragmentos de um discurso amoroso: “Os signos não são provas, pois qualquer um pode produzir signos falsos ou ambíguos. Volta-se, então, paradoxalmente, à onipotência da linguagem: já que nada assegura a linguagem, sustentarei a linguagem pela última e única certeza: não acreditarei mais na interpretação” (p. 179). Note-se que, diferentemente do filósofo grego, o semiólogo francês não fala de discurso verdadeiro ou falso, mas falso ou ambíguo, apontando, destarte, a impotência da linguagem: o paradoxal sintagma “onipotência da linguagem” trapaceia, então, a aporia em que consiste a reflexão sobre a linguagem, flexão diante do abissal mistério dos signos.

Falar de linguagem remete, imediatamente, a Ferdinand de Saussure (1857-1913), autor de um livro que não escreveu (será que os grandes fundadores jamais terão escrito: Buda, Sócrates, Jesus...?), mas editado, na verdade, postumamente, em 1916, a partir de anotações de aulas do aluno Albert Riedlinger, pelos lingüistas Charles Bally e Albert Sechehaye. No Curso de lingüística geral, lemos a lição de Saussure, que abre uma porta de dois batentes: “Mas o que é a língua? Para nós, ela não se confunde com a linguagem; é somente uma parte determinada, essencial dela, indubitavelmente. É, ao mesmo tempo, um produto social da faculdade da linguagem e um conjunto de convenções necessárias, adotadas pelo corpo social para permitir o exercício dessa faculdade nos indivíduos. Tomada em seu todo, a linguagem é multiforme e heteróclita; a cavaleiro de diferentes domínios, ao mesmo tempo física, fisiológica e psíquica, ela pertence além disso ao domínio individual e ao domínio social; não se deixa classificar em nenhuma categoria de fatos humanos, pois não se sabe como inferir sua unidade. A língua, ao contrário, é um todo por si e um princípio de classificação. Desde que lhe demos o primeiro lugar entre os fatos da linguagem, introduzimos uma ordem natural num conjunto que não se presta a nenhuma classificação” (p. 17). Do alto de sua sapiência, também política, Noam Chomsky pergunta-se perplexo: “Qual a função da linguagem? Diz-se freqüentemente que a função da linguagem é a comunicação, e que o ‘objectivo essencial’ é possibilitar a comunicação entre as pessoas. Acrescente-se ainda que só se consegue compreender a natureza da linguagem se se atender a esta finalidade essencial. Não é fácil avaliar esta consideração. O que significa dizer que a linguagem tem um ‘objectivo essencial’ ?” (In ENCICLOPÉDIA EINAUDI, v. 2, p. 19). Há que se notar, primeiramente, que o lingüista genebrino refere-se à linguagem verbal, seja ela oral ou escrita. Já Ducrot e Todorov consideram que “deve-se buscar alhures a especificidade da linguagem verbal. Inicialmente, esta linguagem – a linguagem – caracteriza-se por seu aspecto sistemático. Não se pode falar de linguagem se se dispuser apenas de um signo isolado. É verdade que a própria existência de um signo isolado é mais que problemática: de início, o signo se opõe necessariamente à sua ausência; por outro lado, nós o colocamos sempre em relação (mesmo que não seja de modo constitutivo) com outros signos análogos: a cruz gamada com a estrela, uma bandeira com outra etc. Contudo, normalmente se entende por linguagem um sistema complexo. Em segundo lugar, a linguagem verbal pressupõe a existência da significação (...). É, portanto, uma analogia bastante leve que nos permite falar de ‘linguagem’ no caso de outro sistema simbólico. Em terceiro lugar, a linguagem verbal é a única que comporta determinadas propriedades específicas, a saber: a) pode-se utilizá-la para falar das próprias palavras que a constituem e, com muito mais razão, de outros sistemas de signos; b) pode-se produzir frases que recusem tanto a denotação quanto a representação: por exemplo, mentiras, perífrases, repetição de frases anteriores; c) pode-se utilizar as palavras num sentido que não é conhecido previamente pela comunidade lingüística, fazendo-se compreender graças ao contexto (é, por exemplo, o emprego das metáforas originais).” (p. 104). Um aforismo de Émile Benveniste, inscrito no prefácio a Problèmes de linguistique générale, por nós traduzido, reafirma a condição do ser humano como ser de linguagem : “Os que noutros domínios descobrem a importância da linguagem, verão assim como aborda um lingüista algumas das questões que foram levados a pôr-se e talvez se apercebam de que a configuração da linguagem determina todos os sistemas semióticos”.

De acordo com Barthes, em sua magnífica Aula, falar não será mais, como o quer a mais ortodoxa das lingüísticas, comunicar : “Falar, e com maior razão discorrer, não é comunicar, como se repete com demasiada freqüência, é sujeitar: toda língua é uma reição generalizada” (p. 13).[

Na “geléia geral” da cultura brasileira, por exemplo, há o fenômeno do dialeto calunga, que os escravos criaram em Minas Gerais, mais especificamente na região do Triângulo Mineiro e do Alto Paranaíba, como dá conta, em sua pesquisa, Kárita Aparecida de Paula Borg “a presença do Calunga nos diferentes municípios do Triângulo Mineiro está relacionada à mineração no início do século 18, época na qual surgiu o escravo-faiscador, que garimpava de modo rústico. O dialeto servia , então, como um veículo secreto para transmitir notícias sobre a vida cotidiana – fugas, nascimentos, mortes, etc. Era terminantemente proibido ensiná-lo aos feitores e capatazes, pois este ‘mistério’ era considerado uma forma de resistência dos escravos”. Falava-se, então, para esconder ou, melhor dizendo, para não comunicar, para tapear, para trapacear. Cada palavra, cada signo, cada gesto desenhava um código que abriria, sofregamente, portas para a liberdade.

Lida rapidamente e repetida mecanicamente, quase como um clichê, a definição saussuriana que circunscreve a linguagem como sistema de comunicação camufla, portanto, uma questão fundamental com relação ao corpus definido, na medida em que parece conferir à linguagem uma função simplesmente pragmática, mecanicista, redutora, enfim, da potencialidade infinita desse especial sistema de signos. Com efeito, para além de servir de instrumento, ponte, mediação para a comunicação, a linguagem é ela mesma um sistema de signos, um sistema de signos estéticos e, no caso da linguagem verbal, um sistema de signos literários. Falada ou escrita, a linguagem articula uma rede de signos, enformados por uma estesia, que provocará, no ouvinte e no leitor, uma semiose, também de cunho estético. Cada palavra, como postulava Paul Valéry (1871-1945), já é, em si mesma, uma obra de arte; portanto, será a linguagem, considerada em sua natureza estética, uma obra-prima.

Se, para Jacques Lacan (1901-1981), a verdade é da ordem da ficção, « L'inconscient est structuré comme un langage », o que significa que a linguagem comanda e organiza tanto nossa relação com o mundo como a relação conosco mesmos. Destarte, a teoria lacaniana estrutura-se em torno do desejo e da linguagem, dado que considera ser o desejo a essência do ser humano, que, pela linguagem, tem acesso ao inconsciente. L’être humain designa-se, em termos de Lacan, parlêtre, o que constui um belo jogo de signos, incrustrando a preposição « par » (« por », indicando mediação), o verbo « être » (« ser »), o verbo (transitivo, trasitivo-relativo, relativo, pronominal : por conseguinte, um verbo de múltiplas regências) « parler » (« falar ») e « lettre » (a letra). Eis, pois, nesse seminal neologismo, a versão lacaniana do paradgmático homo loquens. A teoria lacaninana elabora a metonímia, a tradução, a reversão de « parlant » para « parlêtre », configurando, assim, num só signo, uma constelação de signos. O fato de aprender a linguagem corta-nos, de certo modo, do mundo : assim nasce o Real, que não pode ser nomeado ; a linguagem, em que nascemos, ou, com que nascemos, contém valores, organiza o mundo em que haveremos de viver : essa dimensão de organização e distribuição de valores é designada « simbólica » por Lacan. Já o imaginário constitui, no jargão lacaninano, a maneira como o sujeito (sujeito à linguagem e sujeito da linguagem) se percebe pela interpretação dos outros e da linguagem em que se encontra. Finca-se de tal modo na linguagem a teoria de Lacan, que, por exemplo, a criança, no estágio do espelho, que é o momento em que ela se distingue de sua representação, passa, também, a perceber o signo, que está lá por outra coisa, que designa essa coisa, a qual, no entanto, não é (p. 449-495).

Preferindo dizer « texto », ao invés de « literatura », Barthes, amigo de Lacan e jamais por ele analisado, enuncia, em S/Z, instigante leitura semiológica da novela Sarrasine (1830 ), de Balzac (1799-1850) : « Neste texto ideal, as redes são múltíplas e se entrelaçam, sem que nenhuma possa dominar as outras ; esse texto é uma galáxia de significantes, não uma estrutura de significados ; não tem início ; é reversível ; nele penetramos por diversas entradas, sem que nenhum possa ser considerada principal ; os códigos que mobiliza perfilam-se a perder de vista, eles não são dedutíveis (o sentido, nesse texto, nunca é submetido a um princípio de decisão, e sim por lance de dados) ; os sistemas de sentido podem apoderar-se desse texto absolutamente plural, mas seu número nunca é limitado, sua medida é o infinito da linguagem » (p. 39-40). « Lexia » alongada, esse enunciado barthesiano gira, apontando o horizonte infinito da linguagem.

Do fundo quase infinito do Pantanal Matogrossense, o poeta brasileiro Manoel de Barros, cuja linguagem irmana-se ao idioma do sertão mineiro, genialmente recriado por Guimarães Rosa (1908-1967), vê, bakhtinianamente, em “Enunciado”, a linguagem como carnaval: “agora não posso mais priscar na areia quente/ que nem os lambaris que escaparam do anzol./ Não posso mais correr nas chuvas na moda que os bezerros correm. / Nem posso mais dar saltos-mortais nos ventos./ Agora/ Eu passo as minhas horas a brincar com palavras./ Brinco de carnaval./ Hoje amarrei no rosto das palavras minha máscara./ Faço o que posso” (p. 57).

No imbroglio a que uma reflexão sobre a linguagem necessariamente conduz todo pesquisador, lembro-me de uma orientação, ou melhor, uma ordem, que os padres lazaristas, de Mariana-MG, nos davam, nos anos 50: “Ite ad Joseph”, enunciado traduzido, literalmente, como “Ide a José”, e traduzido, literariamente, por um circunlóquio: em qualquer situação de dificuldade, recorrei a São José, modelo de trabalhador, esposo, pai, porque suas bênçãos não vos hão-de faltar. Mutatis mutandis (eis outra expressão iterativa nos meus tempos de seminarista marianense), recupero mais uma reminiscência afetiva e intelectual e socorro-me de Vítor Manuel Aguiar e Silva, em seu (e de todos nós que estudamos, o tempo todo, e amamos, sobre todas as coisas e artes, a Literatura) Teoria da Literatura, que traz luz meridiana também sobre a questão da comunicação literária, vale dizer, da linguagem enquanto sistema de signos literários; colocando o dedo na ferida (narcísea) da querela sobre a linguagem, o egrégio pensador luso afirma: “(...) Não é possível conceituar a comunicação literária como um subsistema do sistema da comunicação linguística. Se o texto literário representa uma mensagem possibilitada e regulada por um sistema semiótico que se constitui necessariamente a partir do sistema linguístico, mas que comporta mecanismos sémico-formais e pragmáticos inexistentes neste, então a comunicação literária deverá ser concebida como um supra-sistema do sistema da comunicação linguística, pois que só se realiza se funcionarem alguns mecanismos essenciais da comunicação linguística, visto que a sua realização não implica a realização de todos os factores canónicos da comunicação linguística e porque na sua realização interactuam específicos elementos sistêmicos” (p. 197).

Em seu prefácio ao livro Ficções (1977), de Hilda Hilst (1930-2004), poeta paulista, Leo Gilson Ribeiro pondera: “A palavra para ela (Hilda Hilst) nada tem de ‘literário’, de bel-letrismo, nem de um real aparente. A linguagem tem um papel encantatório, de aplacar a fúria de conhecer, de romper os limites do apreensível pelo humano para chafurdar no Absoluto. A linguagem é o Tao, o caminho, um labirinto salvático, a linguagem é um ritual propiciatório, uma alquimia de instrumentos verbais para chegar à gnose” (p. IX).

Um poema de Jorge Luis Borges (1899-1986) – Una brújula – epitoma, humana e divinamente, a epistemologia da linguagem, essa bússola imponderável:


Todas las cosas son palabras del
Idioma en que Alguien o Algo, noche y día,
Escribe esa infinita algarabía
Que es la historia del mundo.En su tropel

Pasan Cartago y Roma, yo, tú, él,
Mi vida que no entiendo, esta agonía
De ser enigma, azar, criptografía
Y toda la discordia de Babel.

Detrás del nombre hay lo que no se nombra;
Hoy he sentido gravitar su sombra
En esta aguja azul, lúcida y leve,

Que hacia el confín de un mar tiende su empeño,
Con algo de reloj visto en un sueño
Y algo de ave dormida que se mueve.

(p. 875).



Por sua vez , o poeta carioca contemporâneo Renato Manfredini Júnior (1960 -1996), mais conhecido como Renato Russo, reorganiza, num só poema – “Monte Castelo” -, três discursos de três eras diferentes: o Novo Testamento (“Carta aos Coríntios”) , a Lírica camoniana (“Soneto 11”) e sua própria pós-modernidade; falar a língua significa, então, conjugar a potência do código da língua ao ato (falho? fálico?) da linguagem:



Ainda que eu falasse a língua dos homens.
E falasse a língua do anjos, sem amor eu nada seria.

É só o amor, é isso o amor.
Que conhece o que é verdade.
O amor é bom, não quer o mal.
Não sente inveja ou se envaidece.

O amor é o fogo que arde sem se ver.
É ferida que dói e não se sente.
É um contentamento descontente.
É dor que desatina sem doer.

Ainda que eu falasse a língua dos homens.
E falasse a língua dos anjos, sem amor eu nada seria.

É um não querer mais que bem querer.
É solitário andar por entre a gente.
É um não contentar-se de contente.
É cuidar que se ganha em se perder.

É um estar-se preso por vontade.
É servir a quem vence, o vencedor;
É um ter com quem nos mata a lealdade.
Tão contrario a si é o mesmo amor.

Estou acordado e todos dormem todos dormem todos dormem.
Agora vejo em parte. Mas então veremos face a face.

É só o amor, é só o amor.
Que conhece o que é verdade.

Ainda que eu falasse a língua dos homens.
E falasse a língua do anjos, sem amor eu nada seria.



Será, então, o amor à linguagem a verdadeira linguagem. A canção de Renato Russo, “autor” do Novo Testamento e da sonetística camonina, líder do influente grupo brasiliense “Legião Urbana”, remete, hic et nunc, em minha recepção, ao conto “Teatro de sombras”, do alemão Michael Ende (1929-1995), cujo parágrafo final assim se inscreve: “E, desde então, elas (as sombras) representam para os anjos a história dos seres humanos, na grande linguagem dos poetas. Os anjos entendem essa linguagem e, assim, ficam sabendo como é terrível e maravilhoso, como é triste e engraçado ser gente e viver na terra”. A Poesia é a linguagem, dos anjos e dos homens. Segundo Gérard Genette, “a literatura é uma retórica do silêncio”. Serve de epílogo ao Tractatus logico-philosophicus (1921), de Ludwig Wittgenstein ( 1899-1951), talvez o último filósofo ocidental, a propalada proposição 7, que enuncia: “Daquilo que não podemos falar temos que calar”. Também o silêncio será o epílogo, em aberto, de um verbete sobre a linguagem.

JOGOS DE LINGUAGEM; CÓDIGO; COMUNICAÇÃO LITERÁRIA; COMUNICAÇÃO LINGÜÍSTICA; FUNÇÕES DA LINGUAGEM; JOGOS DE LINGUAGEM; SIGNO.





Referências: AGUIAR E SILVA, Vítor Manuel de. Teoria da Literatura. 7.ed. (1986). BARROS, Manoel de. Poemas rupestres (2006). BARTHES, Roland. Fragmentos de um discurso amoroso (1985). BARTHES, Roland. Aula (1980). BARTHES, Roland. S/Z. Trad. Lea Novaes. (1992). BENVENISTE, Emile. Problèmes de linguistique générale . (1966). BORG, Kárita Aparecida de Paula. “Falar para esconder”. In: Discutindo língua portuguesa. Ano 2, no. 14, p. 56-61. BORGES, Jorge Luis. Obras completas (1974). DUCROT, Oswald e TODOROV, Tzvetan. Dicionário enciclopédico das ciências da linguagem (1988). ENCICLOPÉDIA EINAUDI, v. 2 (1984). ENDE, Michael. O teatro de sombras de Ofélia. In: A escola de magia e outras histórias (1997). LACAN, Jacques. Autres écrits (2001). LACAN, Jacques. Autres ecrits (2001). MUCCI, Latuf Isaias. O Crátilo, de Platão e o jogo da linguagem. In: MALUF, Ued (org.). Reversibilidades não reflexives. Um rompimento nas barreiras da ordem (2005), p. 34-49. PLATON. Cratyle (1967). RIBEIRO, Leo Gilson. In: HILST, Hilda. Ficções ( 1977). SAUSSURE, Ferdinand. Cours de linguistique générale (1983). SAUSSURE, Ferdinand. Curso de lingüística geral. Trad. Antônio Chelini, José Paulo Paes e Izidoro Blikstein. (1969). http://www.mpbnet.com.br/musicos/legiao.urbana/letras/monte_castelo.htm


Latuf Isaias Mucci

Licença poética

Liberdade concedida a um artista, não necessariamente um poeta, para se expressar criativamente, sem obediência rígida a um cânone, a uma gramática, a um código ou a um modelo convencional de escrita. Ao sabor deste tipo de liberdade, é possível encontrar os mais diversos desvios à norma poética, desde rimas falsas a versos de métrica irregular, desde temas obscenos em épocas de contenção moral a mistura de várias formas de expressão literária na mesma composição. Aristóteles tolerou na Poética (1460a, 26) este tipo de liberdade, encorajando os poetas a aproximarem-se das “coisas possíveis” pela verosimilhança: “De preferir às coisas possíveis mas incríveis são as impossíveis mas críveis”. O importante, para validar aos olhos do público leitor a legitimidade da licença poética, é que os fins da poesia livre sirvam os meios utilizados. Uma das mais enigmáticas personificações de Fernando Pessoa, o Professor Trochee, num didáctico texto, “Ensaio sobre Poética: Escrito para edificação e para a instrução dos pretensos poetas” (s.d.), comenta: “Espero escapar ao ridículo universal ao afirmar que, teoricamente, a poesia é susceptível de escansão. Gostaria, porém, que ficasse claro que concordo com o Sr. A. B. quando afirma que a escansão estrita não é de todo necessária para o sucesso e mesmo para o mérito de uma composição poética. E creio não parecer excessivamente pedante se procurar no armazém do Tempo, para citar como autoridade, algumas das obras de um certo William Shakespeare ou Shakspere que viveu há alguns séculos e que desfrutava de alguma reputação como dramaturgo. Esta pessoa tinha por hábito cortar, ou acrescentar, uma ou mais sílabas nos versos das suas numerosas produções, e se era inteiramente permitido naquela época de beleza quebrar as regras do bom senso artístico e imitar algum obscuro escriba, ousarei recomendar ao principiante o prazer desta liberdade poética.” (Pessoa por Conhecer - Textos para um Novo Mapa, trad. de Luísa Medeiros [Atribuído inicialmente ao Dr. Pancrácio], Teresa Rita Lopes, Estampa, Lisboa, 1990). Da Idade Média ao Modernismo, pudemos assistir ao compromisso que o poeta tinha com a retórica e com as artes poéticas que disciplinavam a escrita dos versos. Também conhecida em outros momentos por licença métrica, não estranhamos que a maior parte das liberdades consagradas para infringir a norma são de natureza prosódica ou retórica (quando ocorrem sinalefas, diéreses, sinéreses, síncopes, apócopes, etc.).

Dada a dificuldade natural em respeitar todas as regras escolares, que obrigavam o poeta a conter a sua imaginação criativa a formas programadas e controladas por códigos complexos de poética e retórica, a licença poética serviu muitas vezes para esconder a impossibilidade de tais regras serem infalíveis e totalmente reguladoras da poesia, como se pode testemunhar em Shakespeare, citado por Pessoa, mas também em Luís de Camões e em todos os poetas clássicos, românticos e ultra-românticos, por exemplo. Nestes casos, é quase sempre a questão da rima (e da métrica) que é discutida. A partir do mometo em que o modernismo inaugura praticamente o fim das artes poéticas e dos códigos de retórica, para que a poesia se pudesse expressar com total liberdade formal, torna-se difícil falar de licença poética, a não ser quando se utiliza uma fórmula clássica, o soneto, por exemplo, sem obedecer às suas regras canónicas. As recentes teorias sobre o género têm sido das mais interventivas na crítica às regras que outrora colocavam na autoridade de um crítico erudito o poder extraordinário de declarar os limites da licença poética. Hoje aceita-se que nenhuma forma de expressão literária pode estar sujeita a regras castradoras da sua concretização artística.

Bib.: Marjorie Perloff: Poetic License: Essays on Modernist and Postmodernist Lyric (1990).

Carlos Ceia

Série Contos: O relógio de ouro, Machado de Assis

Publicado originalmente em Jornal das Famílias 1873

Agora contarei a história do relógio de ouro. Era um grande cronômetro, inteiramente novo, preso a uma elegante cadeia. Luís Negreiros tinha muita razão em ficar boquiaberto quando viu o relógio em casa, um relógio que não era dele, nem podia ser de sua mulher. Seria ilusão dos seus olhos? Não era: o relógio ali estava sobre uma mesa da alcova, a olhar para ele, talvez tão espantado, como ele, do lugar e da situação.

Clarinha não estava na alcova quando Luís Negreiros ali entrou. Deixou-se ficar na sala, a folhear um romance, sem corresponder muito nem pouco ao ósculo com que o marido a cumprimentou logo à entrada. Era uma bonita moça esta Clarinha, ainda que um tanto pálida, ou por isso mesmo. Era pequena e delgada; de longe parecia uma criança; de perto, quem lhe examinasse os olhos, veria bem que era mulher como poucas. Estava molemente reclinada no sofá, com o livro aberto, e os olhos no livro, os olhos apenas, porque o pensamento, não tenho certeza se estava no livro, se em outra parte. Em todo o caso parecia alheia ao marido e ao relógio.

Luís Negreiros lançou mão do relógio com uma expressão que eu não me atrevo a descrever. Nem o relógio, nem a corrente eram dele; também não eram de pessoas suas conhecidas. Tratava-se de uma charada. Luís Negreiros gostava de charadas, e passava por ser decifrador intrépido; mas gostava de charadas nas folhinhas ou nos jornais. Charadas palpáveis ou cronométricas, e sobretudo sem conceito, não as apreciava Luís Negreiros.

Por esse motivo, e outros que são óbvios, compreenderá o leitor que o esposo de Clarinha se atirasse sobre uma cadeira, puxasse raivosamente os cabelos, batesse com o pé no chão, e lançasse o relógio e a corrente para cima da mesa. Terminada esta primeira manifestação de furor, Luís Negreiros pegou de novo nos fatais objetos, e de novo os examinou. Ficou na mesma. Cruzou os braços durante algum tempo e refletiu sobre o caso, interrogou todas as suas recordações, e concluiu no fim de tudo que, sem uma explicação de Clarinha qualquer procedimento fora baldado ou precipitado.

Foi ter com ela.

Clarinha acabava justamente de ler uma página e voltava a folha com o ar indiferente e tranqüilo de quem não pensa em decifrar charadas de cronômetro. Luís Negreiros encarou-a; seus olhos pareciam dois reluzentes punhais.

— Que tens? perguntou a moça com a voz doce e meiga que toda a gente concordava em lhe achar.

Luís Negreiros não respondeu à interrogação da mulher; olhou algum tempo para ela; depois deu duas voltas na sala, passando a mão pelos cabelos, por modo que a moça de novo lhe perguntou:

— Que tens?

Luís Negreiros parou defronte dela.

— Que é isto? disse ele tirando do bolso o fatal relógio e apresentando-lho diante dos olhos. Que é isto? repetiu ele com voz de trovão.

Clarinha mordeu os beiços e não respondeu. Luís Negreiros esteve algum tempo com o relógio na mão e os olhos na mulher, a qual tinha os seus olhos no livro. O silêncio era profundo. Luís Negreiros foi o primeiro que o rompeu, atirando estrepitosamente o relógio ao chão, e dizendo em seguida à esposa:

— Vamos, de quem é aquele relógio?

Clarinha ergueu lentamente os olhos para ele, abaixou-os depois, e murmurou:

— Não sei.

Luís Negreiros fez um gesto como de quem queria esganá-la; conteve-se. A mulher levantou-se, apanhou o relógio e pô-lo sobre uma mesa pequena. Não se pôde conter Luís Negreiros. Caminhou para ela, e, segurando-lhe nos pulsos com força, lhe disse:

— Não me responderás, demônio? Não me explicarás esse enigma?

Clarinha fez um gesto de dor, e Luís Negreiros imediatamente lhe soltou os pulsos que estavam arrochados. Noutras circunstâncias é provável que Luís Negreiros lhe caísse aos pés e pedisse perdão de a haver machucado. Naquela[1] nem se lembrou disso; deixou-a no meio da sala e entrou a passear de novo, sempre agitado, parando de quando em quando, como se meditasse algum desfecho trágico.

Clarinha saiu da sala.

Pouco depois veio um escravo dizer que o jantar estava na mesa.

— Onde está a senhora?

— Não sei, não[2] senhor.

Luís Negreiros foi procurar a mulher, achou-a numa saleta de costura, sentada numa cadeira baixa, com a cabeça nas mãos a soluçar. Ao ruído que ele fez na ocasião de fechar a porta atrás de si, Clarinha levantou a cabeça, e Luís Negreiros pôde ver-lhe as faces úmidas de lágrimas. Esta situação foi ainda pior para ele que a da sala. Luís Negreiros não podia ver chorar uma mulher, sobretudo a dele. Ia enxugar-lhe as lágrimas com um beijo, mas reprimiu o gesto, e caminhou frio para ela: puxou uma cadeira e sentou-se em frente de Clarinha.

— Estou tranqüilo, como vês, disse ele, responde-me ao que te perguntei com a franqueza que sempre usaste comigo. Eu não te acuso nem suspeito nada de ti. Quisera simplesmente saber como foi parar ali aquele relógio. Foi teu pai que o esqueceu cá?

— Não.

— Mas então...

— Oh! não me perguntes nada! exclamou Clarinha; ignoro como esse relógio se acha ali... Não sei de quem é... deixa-me.

— É demais! urrou Luís Negreiros, levantando-se e atirando a cadeira ao chão.

Clarinha estremeceu, e deixou-se ficar aonde estava. A situação tornava-se cada vez mais grave; Luís Negreiros passeava cada vez mais agitado, revolvendo os olhos nas órbitas, e parecendo prestes a atirar-se sobre a infeliz esposa. Esta, com os cotovelos no regaço e a cabeça nas mãos, tinha os olhos encravados na parede. Correu assim cerca de um quarto de hora. Luís Negreiros ia de novo interrogar a esposa, quando ouviu a voz do sogro, que subia as escadas gritando:

— Ó seu Luís! ó seu malandrim!

— Aí vem teu pai! disse Luís Negreiros; logo me pagarás.

Saiu da sala de costura e foi receber o sogro, que já estava no meio da sala, fazendo viravoltas com o chapéu de sol, com grande risco das jarras e do candelabro.

— Vocês estavam dormindo? perguntou o sr. Meireles tirando o chapéu e limpando a testa com um grande lenço encarnado.

— Não, senhor, estávamos conversando...

— Conversando?... repetiu Meireles.

E acrescentou consigo:

— Estavam de arrufos... é o que há de ser.

— Vamos justamente jantar, disse Luís Negreiros. Janta conosco?

— Não vim cá para outra coisa, acudiu Meireles; janto hoje e amanhã também. Não me convidaste, mas é o mesmo.

— Não o convidei?...

— Sim, não fazes anos amanhã?

— Ah! é verdade...

Não havia razão aparente para que, depois destas palavras ditas com um tom lúgubre, Luís Negreiros repetisse, mas desta vez com um tom descomunalmente alegre:

— Ah! é verdade!...

Meireles, que já ia pôr o chapéu num cabide do corredor, voltou-se espantado para o genro, em cujo rosto leu a mais franca, súbita e inexplicável alegria.

— Está maluco! disse baixinho Meireles.

— Vamos jantar, bradou o genro, indo logo para dentro, enquanto Meireles seguindo pelo corredor ia ter à sala de jantar.

Luís Negreiros foi ter com a mulher na sala de costura, e achou-a de pé, compondo os cabelos diante de um espelho:

— Obrigado, disse.

A moça olhou para ele admirada.

— Obrigado, repetiu Luís Negreiros; obrigado e perdoa-me.

Dizendo isto, procurou Luís Negreiros abraçá-la; mas a moça, com um gesto nobre, repeliu o afago do marido e foi para a sala de jantar.

— Tem razão! murmurou Luís Negreiros.

Daí a pouco achavam-se todos três à mesa do jantar, e foi servida a sopa, que Meireles achou, como era natural, de gelo. Ia já fazer um discurso a respeito da incúria dos criados, quando Luís Negreiros confessou que toda a culpa era dele, porque o jantar estava há muito na mesa. A declaração apenas mudou o assunto do discurso, que versou então sobre a terrível coisa que era um jantar requentado — qui ne valut jamais rien.

Meireles era um homem alegre, pilhérico, talvez frívolo demais para a idade, mas em todo o caso interessante pessoa. Luís Negreiros gostava muito dele, e via correspondida essa afeição de parente e de amigo, tanto mais sincera quanto que Meireles só tarde e de má vontade lhe dera a filha. Durou o namoro cerca de quatro anos, gastando o pai de Clarinha mais de dois em meditar e resolver o assunto do casamento. Afinal deu a sua decisão, levado antes das lágrimas da filha que dos predicados do genro, dizia ele.

A causa da longa hesitação eram os costumes pouco austeros de Luís Negreiros, não os que ele tinha durante o namoro, mas os que tivera antes e os que poderia vir a ter depois. Meireles confessava ingenuamente que fora marido pouco exemplar, e achava que por isso mesmo devia dar à filha melhor esposo do que ele. Luís Negreiros desmentiu as apreensões do sogro; o leão impetuoso dos outros dias, tornou-se um pacato cordeiro. A amizade nasceu franca entre o sogro e o genro, e Clarinha passou a ser uma das mais invejadas moças da cidade.

E era tanto maior o mérito de Luís Negreiros quanto que não lhe faltavam tentações. O diabo metia-se às vezes na pele de um amigo e ia convidá-lo a uma recordação dos antigos tempos. Mas Luís Negreiros dizia que se recolhera a bom porto e não queria arriscar-se outra vez às tormentas do alto mar.

Clarinha amava ternamente o marido, e era a mais dócil e afável criatura que por aqueles tempos respirava o ar fluminense. Nunca entre ambos se dera o menor arrufo; a limpidez do céu conjugal era sempre a mesma e parecia vir a ser duradoura. Que mau destino lhe soprou ali a primeira nuvem?

Durante o jantar Clarinha não disse palavra — ou poucas dissera, ainda assim as mais breves e em tom seco.

— Estão de arrufo, não há dúvida, pensou Meireles ao ver a pertinaz mudez da filha. Ou a arrufada é só ela, porque ele parece-me lépido.

Luís Negreiros efetivamente desfazia-se todo em agrados, mimos e cortesias com a mulher, que nem sequer olhava em cheio para ele. O marido já dava o sogro a todos os diabos, desejoso de ficar a sós com a esposa, para a explicação última, que reconciliaria os ânimos. Clarinha não parecia desejá-lo; comeu pouco e duas ou três vezes soltou-se-lhe do peito um suspiro.

Já se vê que o jantar, por maiores que fossem os esforços, não podia ser como nos outros dias. Meireles sobretudo achava-se acanhado. Não era que receasse algum grande acontecimento em casa; sua idéia é que sem arrufos não se aprecia a felicidade, como sem tempestade não se aprecia o bom tempo. Contudo, a tristeza da filha sempre lhe punha água na fervura.

Quando veio o café, Meireles propôs que fossem todos três ao teatro; Luís Negreiros aceitou a idéia com entusiasmo. Clarinha recusou secamente.

— Não te entendo hoje, Clarinha, disse o pai com um modo impaciente. Teu marido está alegre tu pareces-me abatida e preocupada. Que tens?

Clarinha não respondeu: Luís Negreiros, sem saber o que havia de dizer, tomou a resolução de fazer bolinhas de miolo de pão. Meireles levantou os ombros.

— Vocês lá se entendem, disse ele. Se amanhã, apesar de ser o dia que é, vocês estiverem do mesmo modo, prometo-lhes que nem a sombra me verão.

— Oh! há de vir, ia dizendo Luís Negreiros, mas foi interrompido pela mulher que desatou a chorar.

O jantar acabou assim triste e aborrecido. Meireles pediu ao genro que lhe explicasse o que aquilo era, e este prometeu que lhe diria tudo em ocasião oportuna.

Pouco depois saía o pai de Clarinha protestando de novo que, se no dia seguinte os achasse do mesmo modo, nunca mais voltaria à casa deles, e que se havia coisa pior que um jantar frio ou requentado, era um jantar mal digerido. Este axioma valia o de Boileau, mas ninguém lhe prestou atenção.

Clarinha fora para o quarto; o marido, apenas se despediu do sogro, foi ter com ela. Achou-a sentada na cama, com a cabeça sobre uma almofada, e soluçando. Luís Negreiros ajoelhou-se diante dela e pegou-lhe numa das mãos.

— Clarinha, disse ele, perdoa-me tudo. Já tenho a explicação do relógio; se teu pai não me fala em vir jantar amanhã, eu não era capaz de adivinhar que o relógio era um presente de anos que tu me fazias.

Não me atrevo a descrever o soberbo gesto de indignação com que a moça se pôs de pé quando ouviu estas palavras do marido. Luís Negreiros olhou para ela sem compreender nada. A moça não disse uma nem duas; saiu do quarto e deixou o infeliz consorte mais admirado que nunca.

— Mas que enigma é este? perguntava a si mesmo Luís Negreiros. Se não era um mimo de anos, que explicação pode ter o tal relógio?

A situação era a mesma que antes do jantar. Luís Negreiros assentou de descobrir tudo naquela noite. Achou, entretanto, que era conveniente refletir maduramente no caso e assentar numa resolução que fosse decisiva. Com este propósito recolheu-se ao seu gabinete, e ali recordou tudo o que se havia passado desde que chegara à casa. Pesou friamente todas as razões, todos os incidentes, e buscou reproduzir na memória a expressão do rosto da moça, em toda aquela tarde. O gesto de indignação e a repulsa quando ele a foi abraçar na sala de costura, eram a favor dela; mas o movimento com que mordera os lábios no momento em que ele lhe apresentou o relógio, as lágrimas que lhe rebentaram à mesa, e mais que tudo o silêncio que ela conservava a respeito da procedência do fatal objeto, tudo isso falava contra a moça.

Luís Negreiros, depois de muito cogitar, inclinou-se à mais triste e deplorável das hipóteses. Uma idéia má começou a enterrar-se-lhe no espírito, à maneira de verruma, e tão fundo penetrou, que se apoderou dele em poucos instantes. Luís Negreiros era homem assomado quando a ocasião o pedia. Proferiu duas ou três ameaças, saiu do gabinete e foi ter com a mulher.

Clarinha recolhera-se de novo ao quarto. A porta estava apenas cerrada. Eram nove horas da noite. Uma pequena lamparina alumiava escassamente o aposento. A moça estava outra vez assentada na cama, mas já não chorava, tinha os olhos fitos no chão. Nem os levantou quando sentiu entrar o marido.

Houve um momento de silêncio.

Luís Negreiros foi o primeiro que falou.

— Clarinha, disse ele, este momento é solene. Responde-me ao que te pergunto desde esta tarde?

A moça não respondeu.

— Reflete bem, Clarinha, continuou o marido. Podes arriscar a tua vida.

A moça levantou os ombros.

Uma nuvem passou pelos olhos de Luís Negreiros. O infeliz marido lançou as mãos ao colo da esposa e rugiu:

— Responde, demônio, ou morres!

Clarinha soltou um grito.

— Espera! disse ela.

Luís Negreiros recuou.

— Mata-me, disse ela, mas lê isto primeiro. Quando esta carta foi ao teu escritório já te não achou lá: foi o que o portador me disse.

Luís Negreiros recebeu a carta, chegou-se à lamparina e leu estupefato estas linhas:

Meu nhonhô. Sei que amanhã fazes anos; mando-te esta lembrança.

Tua Iaiá.

Assim acabou a história do relógio de ouro.

FIM

Pela luz dos olhos teus

Quando a luz dos olhos meus
E a luz dos olhos teus
Resolvem se encontrar
Ai que bom que isso é meu Deus
Que frio que me dá o encontro desse olhar
Mas se a luz dos olhos teus
Resiste aos olhos meus só p'ra me provocar
Meu amor, juro por Deus me sinto incendiar
Meu amor, juro por Deus
Que a luz dos olhos meus já não pode esperar
Quero a luz dos olhos meus
Na luz dos olhos teus sem mais lará-lará
Pela luz dos olhos teus
Eu acho meu amor que só se pode achar
Que a luz dos olhos meus precisa se casar.

Vinícius de Moraes

Copyright © 2008 - Verve Literária - is proudly powered by Blogger
Blogger Template