No livro A Obra de François Rabelais e a Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento (escrito em 1940 e publicado em 1965), Mikhail Bakhtine desenvolve uma inovadora teoria da cultura popular e da sua apropriação pela literatura, baseada nos conceitos de carnaval e carnavalização. Carnaval não se refere aqui apenas ao período antes da Quaresma e centrado no Mardi gras ou Fastnacht, que continua a ser celebrado nas sociedades contemporâneas, mas compreende determinadas festividades que, durante a Idade Média e o Renascimento, decorriam também noutros momentos do ano associados a comemorações sagradas, como o Corpus Christi, e chegavam a totalizar cerca de três meses. As suas origens remontam certamente aos cultos dos mortos e rituais propiciatórios e celebratórios de comunidades agrícolas primitivas que ocorriam durante o tempo das sementeiras e das colheitas, a figuras há muito estudadas pelos antropólogos, como o bode expiatório e o rei sacrificial, e em particular às festas em honra do deus Saturno, que na Roma antiga tinham lugar em Dezembro e eram conhecidas como as Saturnalia. À semelhança do "mundo às avessas" do Carnaval, no tempo em que duravam as Saturnalia vivia-se quotidianamente a inversão da ordem social normal: os escravos tomavam o lugar dos senhores e entregavam-se a toda a espécie de prazeres habitualmente proibidos, numa imitação simbólica do reinado de Saturno, a Idade de Ouro da felicidade e abundância reproduzida na utopia medieval e renascentista do País de Cocanha ou Schlaraffenland.
Para Bakhtine, o Carnaval constituía simultaneamente um conjunto de manifestações da cultura popular e um princípio de compreensão holística dessa cultura em termos de visão do mundo coerente e organizada. O elemento que unifica a diversidade de manifestações carnavalescas e lhes confere a dimensão cósmica é o riso, um riso colectivo que se opõe ao tom sério e à solenidade repressiva da cultura oficial e do poder real e eclesiástico, mas que não se limita a ser negativo e destrutivo, antes projecta o povo-que-ri em liberdade fecunda e regeneradora como a própria natureza.
São três as grandes formas que revestia o riso carnavalesco.
1) Espectáculos e rituais cómicos: não só as complexas procissões do Carnaval propriamente dito, que ocupavam as ruas durante dias, mas também outras festas, ritos, protocolos e representações constitutivos do tempo do Carnaval por toda a Europa, como a festa dos loucos (festum stultorum) ou a festa do burro, em que se celebrava uma paródia da liturgia perante um burro paramentado, várias formas convencionalizadas de risus paschalis, autos, mistérios e soties, festas e feiras organizadas pelas paróquias locais onde pontificavam anões, gigantes e monstros. Da pletora de tipos ou figuras públicas de que o Carnaval era feito, sobressaía sem dúvida o louco (néscio, parvo, bobo, palhaço, truão), representante do próprio espírito carnavalesco, geralmente eleito rei cómico e, nessa condição, alvo de todo o género de abusos jocosos. O que caracteriza estes rituais é, antes do mais, a sua natureza não oficial, configurando, como diz Bakhtine, uma segunda vida do povo, um duplo das práticas da Igreja e do Estado, em que todo o povo participava numa comunhão utópica de liberdade e abundância, de suspensão de todas as hierarquias e de dissolução da fronteira entre a arte e o mundo.
2) Composições verbais cómicas: em estreita ligação com o Carnaval proliferou ao longo da Idade Média uma infinidade de textos de cariz paródico, em latim ou vernáculo, muitos deles produzidos nos mosteiros e destinados a serem utilizados nos ritos carnavalescos. A chamada parodia sacra parodiava todos os aspectos do culto: liturgia, hinos, salmos, Evangelhos e orações, mas outros géneros eram igualmente alvo do riso paródico: decretos, epitáfios, testamentos, etc., cujo sentido residia no rebaixamento ou destronamento de tudo o que era elevado, dogmático ou sério. Bakhtine menciona a coena Cypriani como a mais antiga e popular instância desta literatura, que se cruza com outras tradições afins, muitas vezes de produção e transmissão oral, materializadas nas canções goliárdicas e nos fabliaux e Schwänke. Fortes influências desta discursividade carnavalesca são visíveis, por exemplo, no Decameron, de Boccaccio (1349-51), em Os contos da Cantuária, de Chaucer (1386/7-1400), em A nave dos loucos, de Sebastian Brant (1494) e em O elogio da loucura, de Erasmo (1508).
3) Vários tipos e géneros de linguagem familiar e grosseira da praça pública. A este respeito o Carnaval institui uma nova forma de comunicação, baseada no gesto e no vocabulário que decorre do nivelamento social e da abolição das formalidades e etiquetas. O uso generalizado de profanidades e blasfémias, juras, imprecações, obscenidades e expressões de teor insultuoso definem a linguagem carnavalesca na sua função ambivalente: ao mesmo tempo humilhante e libertadora. Certas obscenidades ainda hoje conservam um sentido simultaneamente de insulto e elogio. Também as pancadas e outras formas de abuso físico cómico, como as que sofre D. Quixote, são características do comportamento carnavalesco, representando a redução do alto ao baixo, simbolizando a morte que dá vida.
Outros três aspectos do universo do Carnaval são dignos de nota.
1) A representação carnavalesca do corpo, a que Bakhtine chama realismo grotesco, é centrada nas imagens deformadas e exageradas do "baixo corporal": a boca, a barriga, os órgãos genitais. Trata-se de um corpo em processo, em metamorfose, em permanente relação com a natureza e com a incessante dinâmica de morte e rejuvenescimento, representado nos actos de comer, defecar, urinar, copular, dar à luz, privilegiando, por um lado, os orifícios com que o corpo se liga ao exterior e, por outro, a representação da infância e da velhice. Muito da tradição da caricatura radica nas imagens grotescas do corpo carnavalizado.
2) O uso da máscara simboliza uma das características mais marcantes do Carnaval: a confusão e dissolução das identidades pessoais e sociais, o triunfo da alteridade durante aquele tempo convencionalmente reservado à transgressão.
3) A relativização da verdade e do poder dominantes constitui um dos sentidos profundos do riso carnavalesco nas suas multímodas manifestações; ao ridicularizar tudo o que se arroga de uma condição imutável, transcendente, definitiva, o Carnaval celebra a mudança e a renovação do mundo.
No livro acima referido, Bakhtine lê Rabelais como o autor que, na história da literatura ocidental, mais exemplarmente carnavaliza a sua obra, isto é, que se apropria de modo mais perfeito e radical das formas, imagens e linguagem do Carnaval. Ao longo de uma extensa e meticulosa análise dos cinco livros de Rabelais (em especial Gargantua e Pantagruel), outros autores são, contudo, frequentemente apontados como modelos de carnavalização da literatura, particularmente Shakespeare e Cervantes. É neste contexto que os conceitos bakhtinianos se têm mostrado extremamente fecundos para a investigação recente em estudos literários e têm sido extensivamente utilizados para uma reinterpretação de certos textos à luz da sua afinidade com os rituais e os géneros carnavalescos. A recuperação e elaboração bakhtiniana do Carnaval permite reconsiderar, por exemplo, a linguagem de Joane no Auto da Barca do Inferno, de Gil Vicente, ou as figuras de Falstaff em Shakespeare e Sancho Pança em Cervantes, ou a imagem de Gulliver apagando com urina o fogo no palácio imperial de Lilliput, como elementos tipicamente carnavalizados.
Mas não só na literatura canónica a teoria do Carnaval tem sido aplicada; outras práticas culturais revelam a sua afinidade com o carnavalesco: o espectáculo teatral (o teatro religioso medieval, a "commedia dell'arte", o "happening"), a pintura (Bosch, Breughel, Chagall), o "cartoon", os graffiti, o cartaz, a publicidade, manifestações de rua, ritos populares residuais, como os cardadores do Vale do Ílhavo e as bugiadas de Sobrado (Valongo). Também os novos meios de comunicação se têm deixado carnavalizar, e não será irrelevante mencionar, no nosso tempo e espaço, esse flagrante avatar do espírito carnavalesco que é a obra televisiva de Herman José.
cómico; PARÓDIA; pós-modernismo
Bib.: Mikhail Bakhtin, Rabelais and His World (1968); Mikhaïl Bakhtine, L'oeuvre de François Rabelais et la culture populaire au Moyen Age et sous la Renaissance (1970); Julio Caro Baroja, El Carnaval (1965); Javier Huerta Calvo et al., Formas carnavalescas en el arte y la literatura (1989); Mikita Hoy, "Bakhtin and Popular Culture", New Literary History, 23, 3 (1992); Gary Saul Morson, Bakhtin: Essays and Dialogues on His Work (1986); David Shepherd (ed.), Bakhtin: Carnival and Other Subjects, Critical Studies, 3/2 e 4 (1991, 1992); Maria J. Teles et al., O discurso carnavalesco em Gil Vicente (1984).
João Ferreira Duarte
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