HAGIOGRAFIA

O vocábulo hagiografia, etimologicamente, é composto dos termos gregos ‘hagio’ [hágios], que quer dizer ‘santo’ e/ou ‘sagrado’, e grafia [graphia], que se refere àquilo que foi posto por escrito, donde, escrito santo ou escritura sagrada.

Historicamente, contudo, o termo não nasceu como um substantivo autônomo, mas como adjetivo usado para indicar a ‘sacralidade’ que se atribuía a um escrito. Não à toa, são Jerônimo, no século V, forjou o termo ‘hagiógrapha’ (adjetivo plural neutro) para qualificar os livros da Bíblia que ele mesmo havia traduzido para o latim e que eram chamados pelos cristãos da época de Sagrada Escritura. Dois séculos mais tarde, santo Isidoro de Sevilha alargou a compreensão do termo, estendendo-o para os ‘autores’ dos livros bíblicos, chamando-os hagiógrafos.

Entre os eruditos eclesiásticos, esta acepção marcadamente bíblica do vocábulo manteve-se majoritária até pelo menos o século XI, quando os monges de Saint Denis de Chartres começaram a empregá-lo para designar outros tipos de escritos que também tratavam de matérias consideradas piedosas. O vocábulo agiografia, como nós o grafamos, foi usado pela primeira vez em fins do século XI, quando Goscelin de Saint-Bertin (+1099), na obra Libellus contra inanes sanctae uirginis Mildrethe usurpatores, dedicou uma seção à Agiografia sanctorum Anglie. Nessa obra, o referido erudito empregou a expressão hagiografia para designar um escrito sobre ‘os santos’ e não, como antes, para se referir a um escrito sagrado. O neologismo surgiu, portanto, atrelado à ampla literatura relativa aos santos que, à época, podia ser encontrada em obras denominadas das mais diversas maneiras, como, por exemplo Vida, Paixão, Atos, Espelho, Legenda, Florilégio, Elogio, Ofício, Livro dos Milagres, etc., e podiam apresentar-se sob a forma de prosa ou de poesia, de escrito literário ou de encenação. No século XIII, inclusive, Tomás de Chobham se referiu aos autores dessas obras chamando-os hagiógrafos. Apesar disso, a expressão não se tornou generalizada senão a partir de fins do século XVII, quando, na Bélgica, se formou a Sociedade dos Bollandistas que, na esteira do padre Jean Bolland, trabalhou ativamente na recolha, edição e publicação dos manuscritos relativos à vida dos santos que acabou dando início à coleção Acta sanctorum.

Os bollandistas conceberam o conceito de hagiografia como ‘ciência’ da vida dos santos e, portanto, submeteram as legendas e demais obras santorais aos crivos da ‘cientificidade histórica’ que começava a despontar no século XVIII. Mediante esse procedimento, os eruditos procuravam identificar, por um lado, as Vidas ‘autênticas’, separando-as das ‘espúrias’ e, por outro, pretendiam encontrar, através das narrativas, os elementos considerados reais ou factíveis, ligados às vida de um “indivíduo real”, separando-os dos elementos inautênticos e das interpolações praticadas pelos hagiógrafos desde os primeiros séculos do cristianismo. Para os bollandistas, a “hagiografia crítica é um ramo da ciência histórica. Seus métodos não diferem em nada daqueles que se aplicam aos sujeitos históricos” (Hippolyte Delehaye,1934: 7) e, com isso, vemos surgir uma outra concepção para o mesmo vocábulo: ‘hagiografia como “ciência” da vida dos santos’. Graças ao trabalho filológico, paleográfico e editorial dos bollandistas e seus discípulos, podemos contar aos milhares o número de manuscritos hagiográficos catalogados e de edições críticas primorosas que até hoje servem de material de trabalho para os especialistas das diversas áreas.

O século XX, por sua vez, assistiu a uma renovação historiográfica muito acentuada, sobretudo com a fundação da chamada Escola dos Anais (École des Annales) francesa que, entre outras coisas, propunha a procura por novas fontes sobre o passado. Foi assim que os estudiosos, não só franceses, começaram a olhar para as obras santorais com um interesse especial, não, porém, no mesmo sentido dos bollandistas, que esperavam separar a hagiografia verdadeira da falsa. A partir da década de 1960, senão antes, os especialistas passaram a usar a expressão hagiografia numa acepção muito próxima àquela dos autores do medievo, isto é, como sinônimo generalizante para designar as diversas obras escritas sobre os santos.

Entendida a história do termo, convém agora entender o que ele representa e o que designa de maneira mais aprofundada. Os especialistas mais diversos observaram que a hagiografia cristã conhece, pelo menos, duas fontes de inspiração: uma material e outra formal; as fontes materiais são os registros mortuários, os necrológios e as atas de martírio e, as fontes formais, as biografias do mundo antigo.

Quanto à “forma”, não há como ignorar que as Vidas de santos foram compostas segundo os modelos retóricos da biografia do mundo antigo (pagão e judaico), não apenas porque o gênero hagiográfico surgiu quando, por exemplo, Plutarco e Suetônio exerciam grande autoridade na área de escrita de Vidas, mas, porque os autores cristãos preferiram traduzir sua fé usando os artifícios discursivos do mundo antigo. Por se tratar de uma obra escrita, as Vidas de santos, como todos os demais tipos de biografias, obedeciam às preceptivas formais e às normas de composição que eram comuns às práticas letradas da época, independentemente de serem executadas por cristãos ou por não-cristãos. No caso das Vidas de santos, essas obras faziam parte importante de toda a produção escrita, portanto, retórica, que o cristianismo, desde seus alvores, formulou com o intuito de estabelecer a verdade revelada como a única instância interpretativa do mundo.

Contudo, o sentido antigo de 'biografia' diverge consideravelmente do sentido contemporâneo. A biografia antiga se ocupava com a narração da vida de grandes personagens, seus feitos, suas virtudes, seus vícios, as grandezas que construíram, etc. Para Plutarco, por exemplo, a ‘biografia’ se distinguia da ‘história’ porque aquela se ocupava dos feitos ‘cotidianos’ de seus personagens, enquanto essa, a história, se ocupava com os grandes feitos, as batalhas, as vitórias, as grandes obras. As biografias, grosso modo, eram compostas para exaltar esses personagens importantes, para imortalizar a memória de seus feitos. A questão da memória e da imortalização é fundamental para os antigos; para Platão, por exemplo, ‘verdade’ é ‘aletheia’, isto é, o não-esquecimento [lethos, em grego, quer dizer esquecimento].

O fato é que, no mundo contemporâneo, a noção de verdade mudou muito: hoje a entendemos como adequação entre a palavra e a coisa, entre a narração e o fato. O homem contemporâneo, quando se acerca da biografia, espera encontrar a ‘veracidade’ dos fatos e da narrativa. Ele quer ter certeza de que tudo o que foi dito, de fato, aconteceu. Nesse sentido, biografias consideradas fantasistas são desvalorizadas. O que entendemos por ‘biografia’, hoje, não tem quase nada a ver com o gênero antigo. A palavra é a mesma, mas o sentido é quase outro.

O homem antigo, por sua vez, esperava encontrar a edificação e um repositório de modelos de conduta que o levassem a dar um salto qualitativo de vida, não na condição social, mas nas práticas. O homem contemporâneo espera ser convencido da verdade, espera a originalidade daquela vida narrada: “o que ela tem de diferente da minha?”. O homem antigo quer ver seu personagem inserido dentro da tradição narrativa – topoi –, saber se o seu personagem foi comparável aos grandes homens do passado, pois não se procurava a sua originalidade. Para entender a distância entre a biografia antiga e a contemporânea deve-se somar ainda o advento da psicanálise freudiana: além da verdade ‘científica’, ‘empírica’, queremos agora entender os ‘sentimentos’, os ‘pensamentos’, os ‘desejos’, os ‘medos’ de nossos “biografados”. Coisas do âmbito da psicologia. A seqüência narrativa adotada atualmente segue os padrões da vida biológica: (família), nascimento, crescimento, fase adulta, velhice e morte. A morte, como última etapa, encerra a possibilidade vital do “protagonista”: depois disso, ele sai de cena. Essa seqüência também era estranha ao mundo antigo.

Essas grandes linhas definidoras da biografia antiga podem ser encontradas na hagiografia cristã; contudo, deve ficar bem claro que a noção de hagiografia, de um ponto de vista material, isto é, de conteúdo, é muito diversa da biografia, mesmo a antiga. Por que? Porque o cristianismo é uma religião de revelação (isto é, Deus se dá a conhecer aos homens) e de salvação (isto é, Deus oferece aos homens uma vida eterna junto dele). Os gregos e romanos antigos acreditavam numa “imortalização” da memória; os cristãos, por sua vez, criam na eternidade da alma no reino de Deus, ao qual se chegava através dos méritos de Cristo e de obras piedosas. A noção de um tempo cíclico, de um eterno retorno, de uma matéria eterna era estranha à cosmologia cristã que, ao contrário, concebia o tempo de maneira linear, tendo sua origem e seu desfecho em Deus. Se o tempo cronológico mostrava a corrupção dos seres, muito melhor devia ser a eternidade (isto é, a ausência do tempo) porque nela os seres mantinham a estabilidade e, portanto, a plenitude.

Desse modo, aos cristãos pouco importava o mundo terreno, sua atenção voltava-se ao mundo celeste onde residia Deus como unidade, bondade, verdade e beleza. As Vidas de santos, por isso, não podiam significar a imortalização de uma memória heróica terrena, mas a vitória eterna de alguém que migrou para Deus, antecedendo aos outros. Ao tempo cronológico, o cristianismo preferiu o tempo escatológico, isto é, de salvação. Cristo havia se encarnado na plenitude dos tempos, inaugurando o tempo salvador que não está preso à contagem dos instantes. Nas Vidas de santos, o passado não é mais pensado em termos históricos, mas em termos escatológicos/salvíficos, como se a composição hagiográfica, de certa forma, procurasse reverter a condenação adâmica e fizesse o caminho de retorno a uma situação primordial que restabeleceria o paraíso, “o lugar ideal”. Não raro, a hagiografia se perde nas brumas do tempo, mostrando muito acentuadamente uma atemporalidade que é marca da atemporalidade do Verbo encarnado. Assim, aprofundando esse raciocínio, podemos dizer que a narrativa hagiográfica estabeleceria um elo entre o passado mítico-primordial-paradisíaco [a vida do santo] e o presente [dos leitores] que se procurava modelar, tendo em vista o futuro escatológico que o leitor esperava ao final do percurso de sua vida, no encontro com a potência divina.

É por isso que a morte do santo não significava, de modo algum, o fim de sua carreira. Ao contrário, em grande parte das hagiografias, é após a morte que o santo entra para a história e inicia a sua operação santoral própria, isto é, taumatúrgica e intercessora junto de Deus.

Desse ponto de vista é que se pode dizer que as Atas de martírio, sob a forma de encíclicas, foram o marco inaugurador da hagiografia. Por meio delas, as pequenas comunidades cristãs encontraram um eficiente veículo de comunicação para relatar às demais comunidades vizinhas a extrema coragem de seus membros diante das perseguições que eram mais ou menos freqüentes nos séculos II e III. A morte assumida como testemunho de fé e adesão aos princípios cristãos foi revestida de forte aspecto sagrado, possibilitando o nascimento de um culto, no início local, que destacava os mártires dos outros mortos e os distinguia pela capacidade taumatúrgica. Assim, os registros da existência de tais heróis foram se tornando imprescindíveis na manutenção e difusão da memória e do culto que se formou ao redor deles. Daí a natureza predominantemente panegírica da hagiografia.

Em linhas gerais, podemos observar que, durante séculos, as Vidas dos santos estiveram envolvidas na promoção do culto aos “mortos especiais”, mártires ou não, que a sensibilidade cristã tinha por próximos de Deus e, nesse caso, capazes de intervirem junto a ele em favor dos vivos. Não tardou e esses escritos começaram a ser utilizados para incentivar a perseverança dos fiéis nos quadros da pertença religiosa, visto que os martírios dos santos favoreciam a edificação dos cristãos ameaçados. Cessado o período das perseguições (séc. IV), o exemplo advindo da renúncia ascética dos eremitas e monges do deserto substituiu o afã martirial e possibilitou a continuação, senão a solidificação, das composições santorais.

Nessa nova fase da produção hagiográfica, a ênfase narrativa recaiu sobre a doutrina e os atos [verba et gesta sanctorum] desses homens e mulheres possuídos pelo ardor das penitências, de cujas práticas os fiéis recolhiam exemplos de renúncia ao mundo. Coisa parecida sucedeu, a partir do século VI, com as Vidas dos santos bispos e padres os quais, diferentemente de seus próceres do deserto, santificaram-se nas cidades e na atenção às suas ovelhas. Por um lado, a exaltação da excepcionalidade eloqüente de figuras ímpares da comunidade cristã; de outro, a vontade, por vezes velada, de seguir-lhes o exemplo: a hagiografia oscilou sempre entre esses dois movimentos que, por mais de uma razão, devem ser vistos como concomitantes e inter-relacionados.

Sabendo que toda a mensagem cristã nasceu baseada na máxima evangélica de que o reino dos céus é a pátria dos filhos de Deus, a catequese cristã no podia ser outra coisa senão a proposta ascética de como conquistar essa pátria. Os santos eram exemplos contundentes dos que “triunfaram da grande tribulação” do mundo (Ap 7, 14), venceram e agora reinam com Cristo na vida eterna. Eles são, portanto, outros cristos e a Vida deles é uma lição, isto é, um ensinamento salutar. É por isso que a hagiografia não fala dos defeitos dos santos, como as biografias falavam dos vícios de seus heróis, posto que a santidade do santo, em última análise, não era deles, mas de Cristo, como modelo original de toda santidade. A hagiografia, portanto, apresenta, nos rostos dos santos, o rosto de Cristo-arquétipo. E é daí que surge a sua função social e pedagógica: as Vidas de santos eram veículos de difusão da mensagem cristã, de cristianização e, por isso, interessava muito de perto aos homens da Igreja, cujos esforços cristianizadores procuraram forjar um discurso específico que possuía sentido parenético e perlocutório. Tão logo os eclesiásticos perceberam a eficiente divulgação desses relatos por entre as várias camadas sociais, intuíram também a sua utilização pastoral. E o fizeram em consonância com o patrimônio cultural consagrado e cristianizado pela tradição da Igreja. O próprio santo Agostinho, na obra De doctrina christiana, já havia posto as bases para a adequação da tradição antiga aos propósitos da fé. Nesse caso, não nos parece exagerado pensar que o gênero hagiográfico tenha sido fruto das práticas letradas comuns ao período de implantação, difusão e maturação do cristianismo, no Oriente e Ocidente, práticas essas inspiradas pelas produções letradas da Antigüidade greco-romana, sobretudo a retórica.



Bib: H. Delehaye. Cinq leçons sur la méthode hagiographique. Bruxelas, 1934; Th. Heffernan. Sacred Biography. Saints and their biographers in the Middle Ages. Oxford, 1988; G. Philippart de Foy. “L'hagiographie comme littérature: concept récent et nouveaux programmes?” In: Révue des Sciences Humaines. Vol. 251, 1998, p. 11-39; M. De Certeau. “Uma variante: a edificação hagio-gráfica”. In: A escrita da história. Rio de Janeiro, 2002. p. 266-278; E. B. Vitz. “Vie, légende, littérature. Traditions orales et écrites dans les histoires de saints”. In: Poètique. Vol. 72, 1987, p. 387-402; J. Dubois e J.-P. Lemaitre. Sources et méthodes de l'hagiographie médiévale. Paris, 2007.



André Luis Pereira Miatello

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