«Fui rocha, em tempos, e fui, no mundo antigo,
Tronco ou ramo na incógnita floresta...
Onda, espumei, quebrando-me na aresta
Do granito, antiquíssimo inimigo...
«Rugi, fera talvez, buscando abrigo
Na caverna que ensombra urze e giesta;
Ou, monstro primitivo, ergui a testa
No limoso paul glauco pacigo...
«Hoje sou homem - e na sombra enorme
Vejo, a meus pés, a escada multiforme,
Que desce, em espirais, na imensidade...
«Interrogo o infinito e às vezes choro...
Mas, estendendo as mãos no vácuo, adoro
E aspiro unicamente à liberdade.» (Antero de Quental)
Este soneto de Antero de Quental intitula-se "Evolução". Nos dois tercetos, Antero diz o que entende por evolução: um processo ascendente que aspira à liberdade. Mas quem aspira à liberdade? O primeiro verso do primeiro terceto responde: o homem que se localiza no topo dessa escada em espiral da evolução. A rocha, o tronco ou ramo, a onda, o granito, a fera ou o monstro primitivo, não aspiram conscientemente à liberdade, e, mesmo que aspirassem de modo consciente, seriam incapazes de a realizar, porque são seres privados da capacidade de interrogar e de agir livremente: o homem é o único ser capaz de interrogar o universo e, por isso, de realizar a aspiração à liberdade no reino da História. Isto significa que o universo «precisa» do homem para realizar a sua aspiração à liberdade e alcançar a sua plenitude de ser, porque o universo sofre, mas não pensa: o homem é o único ser que, lançado na balança constituída pelos três eixos do tempo (passado, presente e futuro), pensa, trazendo para o presente a sinceridade do passado e voltando-se para o futuro como quem aguarda a realização do possível. O universo exprime-se nas categorias da consciência humana: o homem não só conta os factos do universo e do seu tempo histórico, como também se interroga no seu foro íntimo. Lançado na Terra pelo "destino", isto é, pelo ser em evolução, onde o espírito se agita em todas as suas formas inorgânicas e orgânicas, o homem incarna a ideia no seu peito, e, como ser que interroga, procura respostas. O homem enquanto ser que pensa é todo o universo consciente de si mesmo e dotado de inteligibilidade e de sentido. Mas o homem que pensa nem sempre encontra respostas: o choro é o resultado final de uma tentativa de interrogar fracassada, isto é, a existência humana que sofre a falta de respostas a todas as suas perguntas. O homem sem respostas é um ser-dividido e dilacerado, um ser-em-sofrimento, um ser que se perde para a existência plenamente realizada. A dualidade de uma existência trágica: eis o destino de um povo - o povo português - que não consegue encontrar-se consigo mesmo e que Antero procurou pensar sem sucesso. A tragédia portuguesa é claramente antidialéctica e, como tal, autocondena-se ao suicídio: dorme na fatal obscuridade da massa inerte sem conseguir ascender à luz da liberdade. A história de Portugal é anti-história: algo que não emerge da natureza obscura e confusa das forças cegas do caos e da decadência.
O soneto não clarifica completamente a essência da capacidade humana de interrogar, cujo sentido explicitámos com o concurso da tensão essencial que habita entre as "Odes Modernas" e os "Sonetos" de Antero de Quental. No entanto, a sua clarificação é-nos dada na sua obra filosófica: "O universo aspira com efeito à liberdade, mas só no espírito humano a realiza". O espírito humano não é mera sensibilidade, como supõem a ciência mecanicista e a sua filosofia materialista, mas essencialmente espontaneidade e, acima de tudo, força espontânea consciente. E, dado as impressões exteriores o modificarem segundo as suas próprias leis da liberdade, "o espírito percebe o universo, não adaptando-se a ele, mas adaptando-o a si. O universo, tal como ele se nos apresenta, é, no fundo, uma criação do espírito: se existe para nós, é porque o concebemos: aparece-nos, não reflectido na inteligência, mas verdadeiramente visto nela. Todos os factos do universo acumulados não produzem uma ideia. Os factos são o ponto de partida das ideias, cuja virtualidade está no espírito: em si são inertes e inexpressivos. O que lhes dá expressão e verdadeiro ser é a inteligência, em cujas categorias entram, fundidos pela elaboração mental, como em outros tantos moldes, ordenando-se nelas e por elas. O conhecimento é, pois, um facto íntimo e próprio do espírito e o universo conhecido o produto da sua espontânea actividade" (Antero) e, até mesmo, da sua vontade livre. Ou, numa formulação mais hegeliana do que kantiana, "pensar sobre o mundo é já supor nele alguma coisa de fundamentalmente análogo aos princípios da razão, é supô-lo racional. Ora, essa suposição implica a da identidade fundamental do objecto e do sujeito" (Antero). O recurso à linguagem de Kant, o Sócrates da filosofia moderna, e de Hegel, revela a filiação do pensamento filosófico de Antero de Quental e o seu compromisso com o socialismo: "Schelling e Hegel fundaram definitivamente a doutrina da evolução, e fundaram-na na mais alta região das ideias, donde ela domina todo o pensamento do nosso século. A evolução, vista desta altura, (a altura adequada,) não é somente o processo mecânico e obscuro da realidade: é o próprio processo dialéctico do ser, tem as suas raízes, comuns com as raízes da razão, na inconsciente mas fundíssima aspiração da natureza a um fim soberano, a consciência de si mesma, a plenitude do ser e a ideal perfeição. A lei suprema das coisas confunde-se com a finalidade e essa finalidade é espiritual. Com Schelling e Hegel, a filosofia da natureza compenetra-se dos seus verdadeiros princípios metafísicos: o mecanismo dissolve-se no dinamismo, cujo tipo último é o espírito". Schelling e Hegel transfiguraram a imagem do universo: "o seu movimento aparece como uma sucessão e encadeamento de ideias e a sua imagem define-se como a da alma infinita das coisas". Ao atingir a sua finalidade com o surgimento do homem sobre a Terra, o peregrino, o universo em evolução torna-se consciente de si mesmo: a razão ilumina-o e adapta-o às leis do espírito, dando-lhe expressão, inteligibilidade e sentido. A natureza passa a ser o palco do "teatro da história" e o homem, o seu agente racional. Encarada como "teatro da liberdade", a história caminha na direcção da realização do "domínio da justiça", mesmo que tropece pelo caminho e o seu agente regresse à animalidade.
Esta visão antropocêntrica da evolução contrasta fortemente com a visão naturalista da evolução, nomeadamente a de Darwin, dominada pelo jogo cego e fatal das forças elementares e destituída de inteligência. A filosofia de Antero de Quental procurou operar e realizar uma "síntese do pensamento moderno", isto é, uma síntese entre ciência e metafísica, a partir de um território comum: o dinamismo da força e a evolução. Cada uma destas formas de conhecimento tem a sua própria visão da evolução: a ciência mecanicista encara a evolução como uma mera "complicação crescente de forças elementares", enquanto a metafísica, oriunda do idealismo alemão, especialmente dos dois grandes sucessores de Kant, Schelling e Hegel, a vê como um processo progressivo que caminha do simples para o complexo, "ajuntando, em cada momento da evolução, ao tipo inferior, para o fazer passar a superior, um elemento novo, um aumento de ser" (Antero). As duas visões compreensivas da evolução não são rivais e, como "colaboradoras na obra do conhecimento" humano, devem ser integradas num "saber total, ao mesmo tempo positivo e metafísico, experimental e especulativo, tomando o ser na sua unidade, da qual o espírito só arbitrária e violentamente pode ser amputado, e na ordem de desenvolvimento dos seus momentos, dos quais o espírito é o superior e típico" (Antero). À distinção epistemológica entre metafísica e ciência corresponde uma distinção ontológica entre a esfera superior do ser e a esfera inferior do ser: o universo descrito pela ciência é um universo inferior e elementar, construído sobre dados sensoriais primitivos e elementares e, portanto, incapaz de explicar o "mistério do que na consciência está para além da sensibilidade": a "região obscura onde assentam essas explicações" científicas. Tanto a inteligência científica como o universo factual que elabora a partir de impressões sensoriais, revelam aquilo a que Antero chama uma "falta": faltam-lhes os "órgãos mais nobres" da evolução cósmica. "Assim como o movimento, a que tudo reduz, é um movimento sem causa e sem fim, e a necessidade, a que tudo submete, é destituída de razão e incompreensível, assim também a evolução, em cuja espiral faz mover-se esse mundo cego e fatal, privada de verdadeira substância, explicando o concreto pelo simples e reduzindo o superior ao inferior, não tem realidade própria e é, no fundo, uma aparência vã e uma pura ilusão subjectiva" (Antero). O universo da ciência é "um universo que se move nas trevas, sem saber porquê nem para onde. Não o alumia a luz das ideias, não lhe dá vida a circulação do espírito. Paira sobre ele um mudo fatalismo". É, pois, um universo tenebroso, desolado, glacial, morto e amputado: falta-lhe a vida do espírito. A síntese do pensamento moderno consiste em insuflar o espírito na matéria, de modo a explicar a forma inferior do ser pela forma superior do ser, e as forças cegas e passivas pelas forças racionais e espontâneas. Para Antero, o dinamismo psíquico é a chave do dinamismo mecânico: "O espiritualismo dará ao materialismo o que lhe falta, completando-se, por esta insuflação do espírito na matéria, a compreensão ao mesmo tempo positiva e especulativa do universo". O espiritualismo absoluto de Antero de Quental redefine a evolução nos seus próprios termos: "A evolução não é apenas uma complicação crescente de forças elementares: é um alargamento de ideias, isto é, de existência verdadeira. E se o ideal supremo, que a tudo atraí, para que tudo gravita, é razão, vontade pura, plena liberdade, a evolução só será perfeitamente compreendida definindo-se como a espiritualização gradual e sistemática do universo".
J Francisco Saraiva de Sousa
Publicada por J Francisco Saraiva de Sousa em 15:59
Etiquetas: CyberFilosofia e Crítica, Evolução, Filosofia da História, Pensamento Português, Poesia e Filosofia, Ética
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