As operações com a linguagem empreendidas pelos escritores oulipianos remontam à arte combinatória, originariamente expressa no I-Ching, na Cabala judaica e na própria criação do alfabeto, e desenvolvida em estudos de Ramon Lull, Giordano Bruno, Kircher e Leibniz
Roberto Zular
O I-Ching, conhecido como Livro das transformações, representa o primeiro exemplo de literatura combinatória na Antigüidade. A combinação sucessiva de elementos simples leva à criação de um sistema de enunciados. Elementos binários, traços inteiros e interrompidos, formam oito trigramas que recombinados, dois a dois, formam os 64 hexagramas.
Leibniz, filósofo e matemático alemão do século XVII, foi um dos primeiros ocidentais a conhecer o I-Ching, mas o interpretou erroneamente como sendo uma manifestação da linguagem numérica binária, que os antigos chineses dominariam, e que o próprio Leibniz procurava estabelecer.
Muitas formas de escrita visual se utilizaram de processos combinatórios, como por exemplo os quadrados mágicos e as fórmulas de encantamento com palavras escritas ao inverso.
A própria invenção da escrita e posteriormente do alfabeto seria uma forma de criação textual combinatória. Os si labários inauguraram a representação não-pictográfica de coisas ou eventos. Mas, ao representar os sons de uma língua, requeriam centenas de sinais.
Os alfabetos foram além, abstraindo das sílabas individuais elementos separados e constantes, isolando um número restrito de letras para representar sons consonânticos. A criação do alfabeto deve assim muito à evolução da escuta, a um crescente discernimento dos fonemas.
O alfabeto grego, adaptado do fenício, foi o primeiro a incorporar as vogais. Os gregos adaptaram consoantes guturais fenícias, que não existem no grego, para representar vogais. A estrutura combinatória da língua foi aperfeiçoada e a ambigüidade interpretativa resultante da escrita puramente consonantal diminuiu. Os nomes das letras, que antes indicavam elementos da vida quotidiana, deixaram de ter significado próprio, puderam ser memorizados mediante o recitado e reconhecidos de maneira automática.
As primeiras manifestações da escritura grega exibem uma disposição gráfica muito livre. Escrevia-se indistintamente da esquerda para a direita, da direita para a esquerda ou boustrophedon, ou seja, alternadamente, de um lado para outro, como o boi ao arar o campo. Também se escrevia de baixo para cima ou de cima para baixo e de formas irregulares.
A Cabala e o alfabeto consonântico
A conexão entre a linguagem, o número e a magia marca uma corrente da mística judaica, a Cabala. Para o judaísmo esotérico, como é relatado no Sefer Yetzirah, o Livro da Criação, as letras teriam participado da criação do universo e o aprendizado de suas possibilidades combinatórias aproximaria o homem da Divindade. O Sefer Yetzirah, provavelmente escrito no início da era cristã, foi interpretado pelos cabalistas.
A Cabala difundiu-se principalmente no sul da França e da Espanha entre 1200 e princípios do século XIV, desenvolvendo estratégias de reinterpretação de textos bíblicos: a Gematria, uma numerologia das letras, provê para cada palavra uma soma numérica; Notarikon utiliza técnicas acrósticas de abreviação, substituição e permutação; Temurah, recombina as letras formando anagramas. Numa perspectiva gemátrica, as palavras lahson (linguagem) e zeruf (combinação) seriam equivalentes, já que ambas resultam na mesma soma numérica de 368.
O alfabeto hebreu, puramente consonântico, permitia ao leitor grande liberdade de interpretação, na medida em que apenas no ato da leitura as vogais eram determinadas. Por essa razão, o leitor do hebraico aprende a tolerar ambigüidade, a gerar mais interpretações textuais e a resistir à noção de verdades e respostas únicas.
Mesmo os textos sagrados do judaísmo teriam uma instabilidade intrínseca: "Pois Deus anulará a presente combinação de letras que formam as palavras de nosso Torá atual e recombinará as letras em outras palavras que formarão novas sentenças falando de outras coisas."
Considera-se, portanto, que as peculiaridades do alfabeto hebraico teriam ajudado a cultura judaica a desenvolver uma firme resistência à autoridade e ao consenso. Inscrito no judaísmo estaria o impulso à reinterpretação, o que teria proporcionado a capacidade expressiva e inovadora que caracterizaram, por exemplo, o pensamento de Marx, Freud e Einstein e, hoje especialmente, no que se refere à linguagem, o de Jacques Derrida.
O método lingüístico-filosófico de Derrida, segundo David Porush, se constituiria através de compulsivos jogos com palavras. Ao permutar e recombinar letras, ao recuperar as raízes etimológicas das palavras, associando-as a outras, Derrida inaugura um espaço para interpretação e permutação, associação e combinação:
Neste ambíguo território semântico aberto por este jogo irrelevante, aleatório, trivial e irracional, na proliferação de novas palavras, signos e conteúdos semânticos, relações novas, antes ocultas, são reveladas. [Este método] é epistemologicamente potente, revelando relações ocultas, mas preservadas nos signos gramatológicos.
A estratégia lingüística de Abraham Abulafia, um judeu espanhol do século XIII que desenvolveu uma complexa técnica de meditação através da combinação de letras, tem ressonâncias derrideanas. Esse método alfabético e mântrico colocaria a mente num estado de abertura e receptividade.
De acordo com a doutrina de Abulafia, que ele chama Hokhmath ha-Tseruf, ou ciência da combinação das letras, todas as coisas existem só em virtude de seu grau de participação no grande Nome de Deus. Essa meditação seria nada menos que a "lógica mística" que corresponde à harmonia interna de pensamento em seu movimento em direção à Schechina, o espírito de Deus.
O sistema rotatório de Ramon Lull
Figura essencial no desenvolvimento da Ars combinatória, Ramon Lull, ou Raimundo Lúlio, filósofo catalão do século XIII, absorveu elementos da cultura judaica, árabe e cristã. Nascido em Palma de Malorca em 1233, teve aos trinta anos uma experiência lucificadora na qual contemplou os atributos de Deus. Suas visões o conduziram à vida religiosa e missionária e a escrever obras dedicadas à conversão dos infiéis, judeus e muçulmanos.
A Arte de Lull parte de conceitos centrais representados através de letras inscritas em figuras geométricas indicando possibilidades permutacionais.
Os conceitos centrais se subdividem em princípios absolutos e relativos. Os primeiros, chamados dignidades, designam qualificações divinas aceitas pelas três religiões monoteístas. Uma vez que as dignidades se refletem na Criação, proporcionam um conhecimento de Deus e do mundo.
Na Ars ultima, de 1308, as dignidades foram reduzidas a nove: bondade, grandeza, eternidade, poder, sabedoria, vontade, virtude, verdade e glória. Os nove princípios relativos - diferença, concordância, contrariedade, início, meio, fim, maioridade, igualdade e minoridade - estabelecem as relações possíveis entre os princípios absolutos.
As nove letras do alfabeto latino B, C, D, E, F, G, H, I, K designam as duas séries de princípios, absolutos e relativos: B = bondade e diferença, C = grandeza e concordância, e assim por diante.
As figuras conectam os significados das letras através de uma linguagem lógica e permutacional. Na versão definitiva da Ars ultima, há quatro figuras. A figura A representa o princípio absoluto. Consiste de um círculo dividido em setores identificados pelas nove letras. Dentro do círculo, linhas retas sugerem inter-relações entre os conceitos. A letra A ao centro representa, nas palavras de Lull, "o Deus, nosso Deus."
A segunda, figura T, é composta de três triângulos sobrepostos, inscritos em um círculo, no qual as mesmas letras surgem novamente. Os ângulos dos triângulos identificam os trios dos princípios relativos.
A terceira figura é formada por trinta e seis compartimentos - chamados "câmaras" - preenchidos pelas combinações, duas a duas, entre as nove letras.
A quarta figura consiste de três círculos divididos contendo as nove letras repetidamente. Sua simplicidade é apenas aparente. Trata-se da representação de um mecanismo que possibilita, através do movimento, a visualização de combinações radiais. Para se operar, dois círculos móveis devem ser girados em torno de um círculo fixo.
Ainda que creditasse sua obra à inspiração divina, essa última figura se originou da reelaboração de um objeto divinatório árabe, o Zairjat al'alam, ou quadro circular do universo. Ibn Khaldûn, em sua obra Prolegômenos, descreve a za'irja como uma evoluída "máquina" de pensar os acontecimentos:
A construção da za'irja é de um artifício surpreendente. (.) tem a forma de um grande círculo que encerra outros círculos concêntricos, uns se referem às esferas celestes e outros aos elementos, às coisas sublunares e aos seres espirituais, aos acontecimentos de todo gênero e a conhecimentos diversos. As linhas que formam cada divisão estendem-se até o centro do círculo e têm o nome de raios. Sobre cada raio vê-se escrita uma série de letras e cada uma tem um valor numérico.
Do mesmo modo, a Ars magna lulliana propunha um método de formular enunciados a partir de combinações de conceitos identificados por letras inscritas ao longo de círculos concêntricos giratórios. O mecanismo lulliano tem sido considerado, por historiadores da ciência, como a primeira máquina de pensar ou de enunciar sentenças, formadas radialmente através da leitura de letras em movimento potencial ao redor de um centro.
O método de Lull almejava uma sistematização do saber, buscando estabelecer o maior número possível de combinações entre os conceitos e, desse modo, colocar todas as questões possíveis. Posteriormente, os enunciados corretos ou possíveis seriam separados dos falsos ou contraditórios. Lull esforçou-se por construir um mecanismo que pensasse automaticamente, independente do agente humano. Suas proposições desencadearam um processo irreversível de descoberta das possibilidades combinatórias da linguagem e do pensamento.
A obra de Lull, compilada após sua morte, em 1315, por seu discípulo Thomas Le Méyser, veio a exercer forte influência no pensamento europeu, ainda que muitas vezes através de textos apócrifos.
A combinatória e a imagem, instrumentos da magia
Giordano Bruno, filósofo e mago italiano da Renascença, foi um leitor assíduo de Lull. Além de conhecedor da teologia de Aquino, Bruno retorna aos princípios do neoplatonismo e ao hermetismo pré-cristão. Aplica-se também na Arte da memória, na Arte lulliana, e ainda na técnica de compor imagens, na qual confluem a arte dos emblemas e hieróglifos e dos talismãs astrológicos.
Bruno via em Lull o inventor de uma arte lógica que ele desejava levar à perfeição. Esta lógica alcançaria seu ideal ao conceber um mecanismo capaz de potenciar até um grau máximo a invenção racional. Na medida em que forjamos novas combinações estaríamos realmente ampliando nosso conhecimento, pensava o Nolano.
A imagem desempenha um papel fundamental na obra bruniana. Para ele, a atividade intelectual só pode ocorrer através das imagens. A imaginação seria também um venerável método de se comunicar com Deus. "Para contemplar as coisas divinas é preciso abrir os olhos através de figuras."
O filósofo árabe Abenjaldun, ainda que afirmasse que a imaginação podia influenciar o psiquismo, condenava essa prática como ímpia. Ficino, humanista cristão, no entanto, recomendava-a como meio para curar afecções nervosas. O médico Avicena assinalava que palavras, signos e símbolos podem ajudar no restabelecimento da saúde. A medicina mágica servia-se de imagens para exaltar forças profundas do doente, levando-o assim a modificar e curar seus órgãos.
Bruno assume essa iconoatria como fundamento de seu plano de reforma do psiquismo. As imagens, acreditava Bruno, são capazes de afetar o homem em todo seu ser. Não apenas a inteligência aprende ao contemplá-las, mas todas as outras faculdades e órgãos, como a sensibilidade, a imaginação e o afeto, vibram e se comovem em sua presença.
Gomez de Liano explana que, para Bruno, "(.) o homem é um magnum miraculum, um ser projetado ao infinito, cujo progresso tem como objeto a união com a divindade. O amor intelectual é o princípio deste progresso espiritual, que 'não é esque cimento (.) mas sim memória'. Por ser a memória o instrumento desta conversão do homem para e na divindade, Bruno se dedicou durante toda sua vida a desenhar assombrosos artifícios mnemônicos.".
Em De lullian specierem scrutinio, Bruno conjuga a combinatória com uma mnemotécnica. As nove letras do alfabeto lulliano são associadas a nove nomes de personagens conhecidos: B a Brutus, C a Cesar.
Em De umbris idearum, Bruno utiliza o princípio dos círculos giratórios para criar instrumentos para a evolução do homem. Cada círculo inscreve as vinte e cinco letras do alfabeto latino, mais quatro gregas e três hebraicas, completando trinta signos. Bruno associa cada letra às cinco vogais, obtendo 150 câmaras. Descreve ainda trinta "intenções de sombras" e outros tantos "conceitos de idéias" como elementos a serem inter-relacionados, ressaltando que sua combinatória destina-se não apenas ao pensamento, mas também à descoberta das possibilidades do psiquismo.
O lulismo exponenciado: Kircher
A permanência do lulismo e da combinatória como prementes questões intelectuais na Europa do século XVII levaram o imperador da Áustria, Fernando III, a submeter àquele considerado o mais sábio do país, o jesuíta Athanasius Kircher, duas questões. Primeiro, poderia a Arte de Lull resultar em algum proveito na aquisição das ciências? Segundo, valeria a pena perder tempo em aprendê-la e porventura haveria outro método mais rápido e mais eficiente?
Detentor de muitos saberes e desejoso de responder ao imperador, Kircher, depois de ler e reler a Ars magna de Lull, declarou: "(.) por detrás dos princípios lullianos escondem-se tesouros científicos, cuja revelação poderia enriquecer o país. No entanto, torna-se necessário um método de aplicação prática para melhor adaptação de seus princípios às diversas artes e ciências," de outro modo a Arte não estaria ao alcance do homem.
Kircher produziu então sua obra Ars magna sciendi, na qual reelabora o método lulliano, descrevendo várias espécies de combinações. Concebe ainda o ábaco polísofo ou epítome universal dos conhecimentos humanos, e o ábaco pantósofo, um repertório geral dos tópicos para argumentar sobre qualquer matéria que se proponha.
Ainda que criticasse a pretensão dos lulistas que sustentavam que, apenas com a arte de Lull e sem ajuda de nenhuma ciência, até crianças poderiam se tornar senhores muito ilustrados, Kircher acreditava que, segundo as regras da Arte que acabara de criar, qualquer assunto poderia ser explicado sistematicamente, sem ajuda de outros livros.
Apesar de ter sido considerado extremamente imodesto e exagerado em seus delírios barrocos, Kircher manteve extensa correspondência e fascinou aquele que, absorvendo o projeto combinatório, daria um avanço extremamente significativo para o pensamento, Leibniz.
Linguagem e matemática leibnizianas
Em 1660, Gottfried Wilhelm Leibniz, ainda com catorze anos, concebe a idéia matriz do que seria sua Dissertatio de ars combinatória, atualizada seis anos depois. Na Dissertatio, esboça uma lógica inventiva, matemática, da qual a Ars lulliana seria uma precursora. Elabora, no entanto, críticas à obra de Lull, que não teria explorado toda a potencialidade de seu modelo.
Leibniz, por exemplo, almeja conhecer o número máximo de enunciados que se podem formular usando um alfabeto finito de 24 letras. Estaria, segundo Umberto Eco, "fascinado pela vertigem da descoberta", pelos infinitos enunciados que um simples cálculo lhe permite conceber, por jogos combinatórios que possam enunciar proposições ainda desconhecidas.
Sua proposta para uma língua universal buscava um método capaz de expressar toda espécie de conhecimento, mas que deveria ainda atuar como um instrumento para novos descobrimentos.
Esta escritura puramente racional deveria proceder analiticamente, reduzindo conceitos compostos a elementos simples: "Desde que todas as coisas que existem ou que podem ser pensadas se compõem de partes, sejam reais, sejam conceituais, a lógica da invenção deverá esforçar-se, por um lado, por achar os termos simples de todas as coisas, e por outro lado, para derivar de tais termos simples suas combinações ou composições."
A construção de uma nova lógica inventiva não se limitaria no entanto a uma simples reforma dos sistemas anteriores. A complexidade do problema exigia a aplicação de normas concretas: "Análise de um termo dado em suas partes, e destas partes em outras, até obter termos simples, irredutíveis e indefiníveis; ordenação destes em classe; adoção de um sistema convencional de signos; formação de sínteses binárias, ternárias, quaternárias etc."
Seu pensamento matemático abriu-lhe possibilidades impensadas e um método de ordenar a conceituação criativa: "Em filosofia, encontrei um meio para abrir caminho a todas as ciências, mediante uma arte combinatória."
Rotatória oulipiana
Uma arte que primou por criar sistemas enunciatórios não poderia deixar de influenciar os mestres da literatura em estado potencial, os Oulipianos. Marcel Bénabou utilizou a rotatória lulliana para implementar Os três círculos da lipo, uma classificação sistemática e analítica das possíveis operações lingüísticas de uma literatura potencial.
"O objetivo é determinar o maior número possível de manipulações, sem distinção genérica ou de hierarquia. Aqui estão incluídos restrições oulipianas e pré-oulipianas, tanto quanto jogos verbais populares e figuras da retórica clássica."
Naturalmente que a operação deste mecanismo segue os mesmos preceitos de Lull. No entanto, para os oulipianos, isto apenas demonstra que Lull, Bruno, Kircher e Leibniz, bem como os antigos cabalistas, estariam apenas plagiando, por antecipação, as propostas oulipianas.
Artur Matuck é escritor, artista plástico, professor da Escola de Comunicações e Artes da USP e membro do Laboratório do Manuscrito Literário - FFLCH /USP
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