A vestimenta sem fim de Roland Barthes

Sistema da Moda, de 1967, expressa o exercício de um rigor. Faz parte do sonho de cientificidade longamente acalentado por seu autor a partir da descoberta da lingüística de Saussure, da antropologia de Lévi-Strauss e da pintura de Mondrian

Mariza Werneck

"Tenho uma doença: eu vejo a linguagem. Aquilo que eu deveria somente escutar,
por uma estranha pulsão, perversa porquanto o desejo aí se engana de objeto,
me é revelado como uma visão (...).
A escuta deriva em scopia: da linguagem sinto-me visionário e voyeur", Barthes

Na rígida organização dos saberes que perdurou da Antiguidade ao final da Idade Média, a pintura, a escultura e a arquitetura encontravam-se alinhadas entre as artes mecânicas ou servis, cuja fabricação - segundo a crença geral - era fruto apenas do uso das mãos, e não da atividade intelectual, por menor que fosse. Em outras palavras, isso significava que sua execução era apanágio de mulheres e escravos. De todas as artes, apenas a música - por sua ligação inequívoca com a matemática - gozava do privilégio de figurar entre as artes liberais, coisa de gente livre, como a palavra anuncia, que fazia uso da inteligência para executá-las. Foi preciso que pintores renascentistas como Giorgio Vasari e Leon Battista Alberti anunciassem em seus livros, respectivamente, a genialidade dos artistas e a necessidade do conhecimento prévio da geometria na execução de obras dentro dos princípios recém-descobertos da perspectiva para que a pintura fosse elevada à condição de arte maior.
Guardadas as proporções, o mesmo tipo de fenômeno pode ser observado quando se passa do ateliê de pintura renascentista para o ateliê de costura. Do alfaiate medieval à costureira de subúrbio, e até chegar aos desfiles de alta-costura realizados dentro do Museu do Louvre, sob os auspícios do presidente François Mitterrand, houve um longo percurso. Hoje, não há como negar, a moda inscreve-se definitivamente na nova ordem dos saberes, sobretudo por sua recente ascensão à condição de curso universitário, que não deixa qualquer margem à dúvida de que se trata, como diziam os antigos mestres do Renascimento, de cosa mentale. Dito de outro modo, e parafraseando Claude Lévi-Strauss, a moda está aí para demonstrar que também é um objeto bom para pensar.

O livro de Roland Barthes, Sistema da Moda (1967), certamente exerceu um papel determinante nessa história. Concebido como tese de doutorado, que seria defendida sob a orientação no início de Claude Lévi-Strauss e depois de André Martinet - projeto em seguida abandonado - , o livro expressa, antes de tudo, o exercício de um rigor. Faz parte do sonho de cientificidade longamente acalentado por seu autor a partir da descoberta da lingüística de Ferdinand de Saussure, da antropologia de Lévi-Strauss e da pintura de Piet Mondrian.

No entanto, ainda que conste como referência obrigatória em trabalhos acadêmicos que tratam do fenômeno da moda - ocupa, salvo engano, o lugar de texto-fundador -, Sistema da Moda em larga medida permanece um livro indecifrável, misterioso, que só acolhe os iniciados. Em nada parece lembrar O prazer do texto (1973) e os Fragmentos de um discurso amoroso (1977), livros que ensinaram à exaustão que palavras são seres libidinosos, pois, como diz seu autor, "escreve-se com o próprio desejo, e não se acaba nunca de desejar".

Diante disso, uma pergunta se impõe: existiriam, então, dois Barthes? O primeiro, representado pelo semiólogo rigoroso, comprometido com o projeto de construir uma grande ciência dos signos, perspectiva feliz que embalou os anos 1960, e um segundo, uma espécie de seu duplo perverso, que, de dentro do próprio sistema que criara para decifrar os mistérios da linguagem, o corrompia escandalosamente? Vários de seus contemporâneos viram, na suposta deserção de Barthes das fileiras da cientificidade, uma traição imperdoável. Os mais argutos afirmam, no entanto, que é possível discernir, até em seus textos mais heréticos, o mesmo rigor, a mesma arquitetura interna minuciosamente elaborada, a mesma celebração da inteligência e dos sentidos, enfim, o mesmo Barthes. Afinal, coerente com sua vocação do desvio, ele afirmou, certa vez, que seria impossível conceber uma semiologia que não fosse também uma semioclastia.

Resta indagar o que teria determinado sua escolha pelo tema da moda, sobretudo a feminina, ele que se interessava tão pouco pelas mulheres. A pergunta, formulada por seu biógrafo, o semiólogo e lingüista francês Louis-Jean Calvet, parece obter uma resposta bastante óbvia, no que diz respeito a Barthes: não é de moda que se trata, mas de seu discurso. O que está em questão, mais uma vez, é apenas a linguagem e seus secretos desafios. Nesse sentido, diz Calvet, "o corpo da mulher está ausente desse vestuário escrito, do qual ele é apenas o pretexto, o suporte".

Como então decifrar esse texto incorpóreo, a aridez dessas classificações que parecem remeter-se apenas a si mesmas? Seria possível realizar, nesse livro, uma leitura flutuante, em tudo contrária ao seu explícito projeto, e ainda assim permanecer fiel a ele? Barthesianamente, poderíamos dizer que sim. Como demonstrou em S/Z, livro em que decompõe e recompõe um pequeno conto de Balzac, no qual Barthes concebe o exercício da escritura como uma atividade gratuita e livre que se prolonga para além do ponto final, imposto pelo autor. Os livros multiplicam-se em infinitas escrituras, tornam-se escrevíveis, e a literatura nada mais é do que um direito de escrita, e a busca do prazer do texto. Sigamo-lo, então.

Para construir o campo semântico da moda, seu vocabulário básico, Barthes pesquisa inúmeras revistas especializadas. É delas que retira a graça leve de suas epígrafes, que servem de fio condutor às suas reflexões: "Os trajes de cidade pontuam-se de branco."; " Um vestido de algodão de xadrezes vermelhos e brancos.". Ou ainda: "Gazes, organzas, voile, musselina de algodão, eis o verão". É inacreditável o que consegue extrair desses pequenos enunciados e como consegue estabelecer entre eles rigorosas relações de sentido, obedecendo sempre ao mesmo princípio de delicadeza. Seu ponto de partida é a constatação de que existem três tipos de vestuário: o real, o imagético e o escrito. Embora saiba que a fotografia de moda reveste-se de um interesse especial, ocupa-se apenas do vestuário-escrito, que é "levado pela linguagem, mas também lhe oferece resistência, e é nesse jogo que ela se faz".

Outra estratégia metodológica que utiliza e que constitui, em si mesma, um jogo sutil de imaginação é a invenção de uma vestimenta infinita, da qual todas as outras possam ser depreendidas. Seguindo com minuciosa fidelidade os preceitos da atividade estruturalista, Barthes sugere: "Imagine - se possível - uma mulher coberta de uma roupa sem fim, que é, por sua vez, tecida de tudo o que diz o jornal de moda, pois essa roupa sem fim é dada por meio de um texto sem fim. Essa roupa total, devemos organizá-la, isto é, recortar, nela, unidades significantes, para podermos compará-las entre si e reconstituir assim a significação geral da moda".

Essa imagem talvez constitua uma das mais eficazes chaves de leitura do livro. Recortar e recompor, organizar em uma nova ordem, e disso extrair o sentido, eis o projeto. Barthes não se cansa jamais de classificar, de construir um denso inventário, de cultivar o gosto das taxonomias. Mais do que isso, age como um demiurgo, organizando um mundo novo, ávido de nomeações. Estabelece gêneros, subgêneros, espécies, num ir-e-vir incessante entre a natureza e a cultura. Não desconhece, certamente, o efeito estético que se pode depreender de toda enumeração. Se o vestido infinito é uma ferramenta explícita para pensar a moda, as classificações áridas denunciariam, quem sabe, e ainda que às avessas, um desejo secreto de poesia.

Isso fica mais evidente quando dedica um longo capítulo ao que denomina "a poética do vestuário". "Pode-se esperar do vestuário que ele constitua um excelente objeto poético. Primeiramente, porque ele mobiliza com muita variedade todas as qualidades da matéria - substância, forma, cor, tactilidade, movimento, apresentação, luminosidade; e depois porque, em contato com o corpo e funcionando ao mesmo tempo como seu substituto e sua cobertura, é ele, certamente, objeto de um investimento muito importante."

Essa disposição poética pode ser constatada pelas descrições freqüentes e detalhadas de vestuários encontradas na literatura. No entanto, prossegue, a moda frustra esse projeto poético, banalizando-o, e não se encontra nas revistas especializadas nada que contribua para a construção de uma psicanálise das substâncias, ou que remeta a um exercício da imaginação, conclui ele, em uma sutil evocação a Gaston Bachelard.

Embora pretenda passar ao largo da literatura, a tentação é grande. Algumas vezes, quase veladamente, Proust se insinua. Não pode ser apenas fruto do acaso o uso, em sua análise, de um pequeno fragmento, colhido nas revistas de moda, que fala de uma certa "moça anglófila, talvez apaixonada por Proust, e que passa suas férias à beira-mar". Esse detalhe, presente na revista, mas também no texto barthesiano, contribui, em uma e em outro, para criar uma atmosfera. E é suficientemente evocativo para permitir que o capítulo se feche fantasmado pela presença insidiosa do autor de Em busca do tempo perdido, ainda que pela sua negação: a Moda, afirma Barthes, só poderia produzir um romance rudimentar e amorfo, sem temporalidade. "O tempo não está presente na retórica da Moda. Para redescobrir o tempo e seu drama, necessário se faz deixar a retórica do significado e abordar a retórica do signo de Moda." Aqui, inapelavelmente, e mais uma vez, impõe-se abandonar a terra prometida da literatura e retornar à ciência, que, por sua vez, não deixa de ser tratada como ficção.

Isso porque, e apenas para concluir, o que interessa a Barthes, sobretudo, e não importa em que contexto, é colocar em cena a linguagem e suas máscaras, trapacear com ela e devolvê-la viva, transformada seja em discurso de moda, seja em discurso amoroso, no discurso mais científico ou, se quiserem, no mais "leviano", desde que ela represente um desafio situado, como ele mesmo diz, no limiar do inteligível.

Mariza Martins Furquim Werneck é doutora em Ciências Sociais e professora de Antropologia e Estética na PUC-SP

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