Várias dificuldades surgem quando se tentam definir os contornos de um género tão antigo como o género literário farsa, bastante cultivado entre nós ao longo de toda a Idade Média (neste contexto entende-se que o termo Idade Média abrange o período de tempo cronológico que medeia entre a queda do Império Romano no séc.v e meados do séc.xvi), porque nem todos os textos designados, na época histórica em que surgem ou à posteriori, como farsas possuem um conjunto de traços comuns que permitam pacificamente a sua inclusão num mesmo género único, verificando-se, a par de um notório hibridismo de formas, uma grande imprecisão no uso do termo em causa.
Etimológicamente, segundo José Pedro Machado (1977: p.24), o termo «farsa» deriva do latim popular “ farsa, feminino tomado substantivamente de farsus, p.p. de farcire, pelo fr. farce, que, segundo Bloch-Wartburg, s.v., «a pris aussi le sens de «petite pièce bouffonne» au xve. s., probabl. parce que cette petite pièce était d’abord introduite dans la représentation d’un mystère, comme la farce qu’on introduit dans une volaile, etc., d’oú le sens moderne de «chose plaisante qu’on fait ou qu’on dit». (...)»”. Parece, pois, que numa fase inicial a farsa, género pertencente à forma natural dramática, não seria ainda um género autónomo, mas parte integrante de outros, entre eles o mistério.
No intuito de tentar esclarecer um pouco a evolução que este conceito sofreu até ao final da Idade Média, referir-se-ão duas definições de farsa dadas por autores do séc. xvi e citadas por Jessica Milner Davis (1978). A primeira é de Giovan-Maria Cecchi e surge no prólogo de uma peça sua de 1585, La Romanesca: “«The Farsa is a new third species between tragedy and comedy. It enjoys the liberties of both, and shuns their limitations... It is not restricted to certain motives; for it accepts all subjects – grave and gay, profane and sacred, urbane and rude, sad and pleasant. It does not care for time or place...»” (Davis, 1978: pp.13-14). A segunda é de P. Delaudun d’Aigaliers e surge numa obra de sua autoria de 1598, L’Art Poétique François: “«Le sujet [de la farce] doit estre gay et de risée; il n’y a ni scenes ni pauses. Il faut noter qu’il n’y a pas moins de science à savoir bien faire une farce qu’une eglogue ou moralité.»” (Idem, p.13). Com base nestes dois testemunhos da época é lícito inferir-se que no séc. xvi a farsa era vista como um género dramático que autorizava uma grande variedade temática, privilegiando a de natureza cómica, e que não encarava de forma muito rígida a sua configuração formal, nomeadamente, as unidades de tempo e de lugar, tão valorizadas pela tradição clássica, e a divisão do texto em cenas ou pausas. Também se percebe desde logo a enorme abrangência que o termo farsa entretanto adquirira, dada a sua capacidade de designar um vasto número e um conjunto heterogéneo de peças, muito dissemelhantes entre si.
Do séc.xvi até à actualidade a definição deste género foi-se precisando, sendo hoje um pouco mais nítidos os contornos da farsa. Género criado na Idade Média, a partir de um substrato constituído por Sermões Burlescos, Procissões Litúrgicas, Momos, Ladaínhas, Fantasias Alegóricas, Moralidades, Mistérios e Fabliaux franceses e ingleses e por toda uma cultura popular carnavalesca, a farsa é uma categoria genérica que engloba peças curtas, normalmente num só acto e, a maior parte das vezes, sem divisão cénica. Este género poderá ter tido origem na Comédia dell’Arte italiana, cujo texto era apenas um esboço, um esquema da intriga que os actores, tipos sociais cristalizados e imutáveis de peça para peça, desenvolviam ao sabor das circunstâncias e da inspiração do momento, daí o carácter abreviado e conciso da farsa nos seus primórdios.
Este género, classificado durante o período do Renascimento como género menor, tem tendência para imitar acções, interesses e estados de espírito pouco elevados. É um género dramático que representa cenas da vida profana, simultaneamente agressivas, pela sátira contundente, e festivas, pelo cómico hilariante. Reproduzindo o ambiente popular e burguês da época, ou apenas plasmando um episódio cómico flagrante da vida quotidiana da personagem, apresenta em conflito, geralmente com uma grande economia de recursos, as forças da autoridade convencional e as forças da rebeldia. Não raro se trata da luta pelo poder entre duas forças opostas, no âmbito das relações sociais, por exemplo entre pais e filhos, amos e criados, marido e mulher, etc. Vito Pandolfi chega mesmo a afirmar que a vitalidade de certas farsas que ainda hoje conservamos resulta da forma como elas reflectem a vida da época e as relações que se instauravam no interior de uma família.
A estrutura da farsa podia coincidir com uma das seguintes três situações: ou se tratava de uma intriga baseada num tema muito simples e de desenvolvimento inexistente, reproduzindo um único pequeno episódio; ou tinha uma estrutura mais elaborada e apresentava já uma justaposição de episódios, mas habitualmente, sem qualquer conexão lógica e directa entre si; ou, assumindo um nível de complexidade muito maior, apresentava mecanismos de coesão textual que a configurava como uma intriga com princípio, meio e fim. Nos dois primeiros casos era comum surgirem meros desfiles de tipos sociais; na última situação, sem dúvida uma composição dramática mais elaborada, podiam surgir já personagens individuais e redondas, passando por situações muito peculiares às quais dão respostas muito pessoais.
Tratando-se de um género menor que inclui peças ao gosto popular, a farsa punha em palco um reduzido número de personagens, segundo Aguiar e Silva (1982: p.347) preferentemente pertencentes a esta mesma camada social. Se a tendência era muitas vezes reproduzir o retrato vivo de certos tipos bem conhecidos, o que, de qualquer modo, pressupunha uma grande capacidade de observação realista da vida quotidiana e das pessoas, encontramos, porém, composições onde se esboça já o delineamento do carácter da personagem redonda, surgindo em cena personagens com uma vivência psicológica acentuada e que sofrerão modificações ao longo da peça.
A farsa fazia também frequentemente uso da sua potencial possibilidade de subverter a ordem social estabelecida através do mecanismo da sátira. Esta era sempre muito contundente e chegava, por vezes, a ser cruel, não raro fazendo uso de uma linguagem grosseira, escatológica e até desbragada e impudica, o que, invariavelmente, gerava o cómico e o riso dissoluto. No entanto, com alguma frequência eram as camadas mais baixas da pirâmide social e os mais fracos os alvos preferenciais e os mais fáceis de atingir.
Em suma, a farsa é um género dramático menor que a nível formal/estrutural se caracteriza pela ausência de divisão em actos e de marcação de cenas; pela despreocupação total com as unidades de tempo e de espaço; pela utilização de parcos recursos cénicos; pela colocação em palco de um reduzido número de personagens; pela abundância de tipos sociais característicos da época; eventualmente pela presença de uma personagem redonda que sofre ao longo da peça evolução psicológica e moral; pelo delineamento de uma intriga com um nó, desenvolvimento e desenlace; pela presença de sátira, fonte de cómico; e pelo recurso frequente a uma linguagem de conotações eróticas. A nível temático, a farsa privilegia a problematização da luta entre forças opostas, do relacionamento humano, familiar e amoroso, da oposição dos valores tradicionais e convencionais a valores individuais e pessoais e o recurso frequentemente ao equacionamento de um triângulo amoroso.
Bibliografia fundamental:
AGUIAR e SILVA, Vítor Manuel de, 1982, Teoria da Literatura, Coimbra, Liv. Almedina.
BEN-AMOS, Dan, 1974, “Catégories analytiques et genres populaires” in Poétique nº19, Paris, Seuil, pp.265-293.
COELHO, Jacinto do Prado, 1978, Dicionário de Literatura, Porto, Liv. Figueirinhas, tomo I.
DAVIS, Jessica Milner, 1978, Farce, London, Methuen & Co. Ltd.
JAUSS, Hans Robert, 1970, “Littérature médiévale et théorie des genres” in Poétique nº1, Paris, Seuil, pp.79-101.
MACHADO, José Pedro, 1977, Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa, Lisboa, Livros Horizonte, 3º volume.
MENDES, Margarida Vieira, 1990, “Gil Vicente: o génio e os géneros” in Estudos Portugueses, Homenagem a António José Saraiva, Lisboa, ME.
PANDOLFI, Vito, s.d., “farces et soties” in Histoire du Théâtre, Marabout Université.
PICCHIO, Luciana Stegagno, 1969, História do Teatro Português, Lisboa, Portugália Editora.
REBELLO, Luiz Francisco, 1989, História do Teatro Português, Lisboa, Publicações Europa-América, 4ª ed.
ZUMTHOR, Paul, 1972, Essai de Poétique Médiévale, Paris, Éditions du Seuil.
Bib.: B. Rey-Flaud: La France ou la Machine à rire. Théorie d’un genre dramatique (1450-1550) (1984)
Teresa Gonçalves
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