O valor estético de uma obra literária não é algo que possa ser proposto como um absoluto em si mesmo, na medida em que circula por ordens muito próprias de existência social e cultural dos objectos considerados artísticos. A relação de dependência mútua entre o valor estético, a função estética e a norma estética foi brilhantemente estudada pelo checo Jan Mukarovský, durante as décadas de Trinta e Quarenta, no âmbito mais geral da pesquisa teórica e crítica levada a cabo pelo chamado Estruturalismo Checo*, e antes de Mukarovský cair no erro infeliz de, sobretudo a partir de 1951, negar toda a sua obra anterior em nome da adesão a uma triste ortodoxia comunista (veja-se R. Wellek, 1970).
É ainda operativo o quadro teórico por que Jan Mukarovský, o mais brilhante continuador do pensamento dos formalistas russos e um dos patronos incontestados, juntamente com Felix Vodicka, da estética da recepção alemã, colocou a problemática da literatura no quadro sociológico dinâmico de uma realização simultaneamente semiótica e comunicativa. Partindo da premissa de que «a obra literária é um signo, e portanto, pela sua própria essência, um facto social» (J. Mukarovský, 1936, 1977: 94), Mukarovský destaca a importância dos valores extra-estéticos contidos numa obra, tanto nos seus componentes formais como temáticos e, por aí, introduz o receptor como ser social, isto é, como uma figura cujos dados intelectuais, emocionais e volitivos globais se confrontam com os factos inscritos na obra: “As experiências que vibram no receptor graças ao impacto da obra de arte transmitem os seus movimentos à imagem global da realidade na mente do receptor” (loc. cit.).
É por esta relação entre a construção interna da obra e os paradigmas de conhecimento vigentes na colectividade que a recebe que Mukarovský propõe, por um lado, um entendimento da função estética como uma construção cultural variável no tempo e no espaço e, por outro lado, um entendimento da norma estética como critério estabilizador do valor estético—sujeita, por isso, a constantes violações e sucessivas alternâncias (vd. id.: 60-61). Se o estético não é uma característica real das coisas, nem tão pouco está relacionado de maneira unívoca com qualquer característica das coisas, a função estética também não está sob o domínio pleno do indivíduo: “A estabilização da função estética é um assunto da colectividade, e a função estética é uma componente da relação entre a colectividade humana e o mundo. Por isso, uma extensão determinada da função estética no mundo das coisas está relacionada com um conjunto social determinado. A maneira como este conjunto social concebe a função estética determina finalmente também a criação objectiva das coisas com o fim de conseguir um efeito estético e a atitude estética subjectiva em relação às mesmas” (id.: 56).
Por outro lado, a norma estética, que tende para uma obrigatoriedade sem excepções sem atingir nunca a validade de uma lei (isto é, sem se negar como norma), autolimita-se permanentemente, não só pelas possibilidades que constantemente existem de ser violada, mas também porque qualquer norma pode coexistir (e normalmente coexiste) com outras normas aplicáveis ao mesmo caso concreto. Ambas possuem o mesmo valor e ambas competem entre si: “A norma está (...) baseada numa antinomia dialéctica fundamental entre a validade incondicional e a potência meramente reguladora, e inclusive só orientadora, que implica a possibilidade da sua violação” (id.: 61). E ainda: “As normas que se enraizaram muito fixamente em qualquer sector da esfera estética ou em algum meio social podem sobreviver muito tempo; as normas novas estratificam-se paulatinamente a seu lado, e assim surge a convivência e a competição de muitas normas estéticas paralelas” (id.: 71).
A conceptualização do valor estético decorre naturalmente deste entendimento da existência da função e da norma. Partindo do princípio de que o cumprimento da norma não é uma condição indispensável do valor, Mukarovský desloca a problemática do valor estético para a validade e alcance da valoração estética, fazendo depender, no entanto, o estudo dessa problemática do reconhecimento fundamental da variabilidade da própria valoração estética: “O valor estético é (...) variável em todos os seus graus, sendo impossível que se mantenha numa imobilidade passiva. Os valores «eternos» mudam e transformam-se em parte mais lentamente, em parte de maneira menos perceptível do que aqueles que estão em níveis inferiores. Mas nem sequer o próprio ideal da durabilidade invariável do valor estético, independente das influências do exterior, constitui em todas as épocas e em todas as circunstâncias o mais alto e o único desejável” (id.: 82).
A variabilidade surge, assim, inscrita na própria essência do valor estético. Mesmo aqueles autores sinalizados pelos chamados «valores eternos», como por exemplo Shakespeare, não estão isentos desta inscrição. Por um lado, porque é possível observar, em relação ao drama shakespeariano, «oscilações» valorativas importantes. Por outro lado, e principalmente, porque há diferenças substanciais entre as obras de Shakespeare que cada tempo, cada lugar, cada espaço cultural sente(m) como «vivo», ou «histórico», ou «representativo», ou «escolar», ou «exclusivo» ou «popular» (vd. id.: 81).
Neste sentido, o valor estético, porque não é unívoco nem invariável, não será um estado (ergon) supra-social ou trans-histórico, mas um processo (energeia) decorrente da lógica da evolução social e do seu sistema de dominações. Por isso, ainda que se apresente sem mudanças no tempo e no espaço, o valor estético surge como um processo multiforme e complexo, manifestando-se, por exemplo, nos desacordos entre os críticos acerca de obras recém-criadas, na instabilidade dos gostos no mercado artístico, na valorização ou desvalorização súbitas de certos autores, etc. (vd. id.: 83).
Por outro lado, o valor estético também se encontra dependente da influência de instituições sociais que actuam directa ou indirectamente no sistema de valoração. Para além da acção institucional da crítica, o condicionamento da valoração estética surge desde logo na educação, em particular na educação artística, no mercado das obras e nos meios publicitários, nas exposições, nos museus, nos concursos e nos prémios públicos e, não raras vezes, na censura. Todas estas instituições, em conjunto com outras cuja acção é menos evidente mas não menos eficaz, representam tendências sociais específicas e, portanto, não só determinam que «o processo de valoração estética [esteja] relacionado com a evolução social» (id.: 84), mas também que «o carácter colectivo e incondicional da valoração estética se reflicta nos juízos individuais» (loc. cit.).
Função, norma e valor estéticos são assim entendidos por Mukarovský, nas suas múltiplas e complexas relações, como factos sociais, isto é, dependentes das contingências de diferentes formações sociais, de diferentes programas colectivos de conhecimento, de diferentes contextos históricos e culturais. A produtividade teórica e crítica destes aspectos nucleares do pensamento de Mukarovský mantém-se ainda viva e actuante.
Bibliografia:
Jan Mukarovský, Escritos de Estética e Semiótica del Arte; Jordi Lovet (org.), Barcelona, 1977.
Peter Steiner (org.), The Prague School. Selected Writings, 1929-1946, Austin, 1982.
René Wellek: “The Literary Theory and Aesthetics of the Prague School”, in Discriminations: Further Concepts of Criticism; New Haven, 1970.
Manuel Frias Martins
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