Expressão empregada desde os fins dos anos 40 para denominar um tipo de ficção hispano-americana que reagia contra o realismo/naturalismo do século XIX e contra a “novela da terra”, um tipo de regionalismo que imperava nas primeiras décadas do século XX. O momento mais expressivo e polémico desse novo tipo de narrativa teria sido por volta dos anos 40, com Jorge Luis Borges, Alejo Carpentier e Arturo Uslar Pietri, mas logo se estendeu para outros autores, como Miguel Ángel Asturias, Juan Rulfo, Adolfo Bioy Casares, Juan Carlos Onetti, José Lezama Lima, José María Arguedas e, teve seu ponto culminante nos autores mais jovens então, que formaram o famoso boom da literatura latino-americana: Carlos Fuentes, Gabriel García Márquez, José Donoso e outros. Já sem a força polémica primeira, atinge uma geração mais jovem ainda, como é o caso da escritora Isabel Allende e de Laura Esquivel autoras, respectivamente, de A casa dos espíritos e Como água para chocolate, obras muito divulgadas, inclusive através de sua versão cinematográfica. O primeiro de todos os autores a empregar a expressão realismo mágico foi o venezuelano Uslar Pietri, em Letras y hombres de Venezuela (1948). Para ele essa nova narrativa viria a incorporar o “mistério” e uma “adivinhação (ou negação) poética da realidade”. Dessa maneira procurava corrigir os limites do realismo puro. Daí ele sugerir “o que na falta de outra palavra poderia denominar-se um realismo mágico”. No mundo académico foi, porém, Angel Flores o primeiro a usar o sintagma “realismo mágico”, na conferência “Magical Realism in Spanish American” ( Nova York, MLA, 1954) publicada depois em Hispania, 38 (2) , 1955. Este trabalho divulgou a designação que passou a ser usada para a nova narrativa hipano-americana. Observava Flores que a novidade dessa literatura era um tipo de representação em que coexistem fantasia e realidade. Ele situa o começo do realismo mágico em Jorge Luis Borges, com a Historia universal de la infamia (1935). Apenas em 1967 (vinte anos depois de Uslar Pietri ter lançado a denominação), surge um trabalho do crítico Luis Leal, “El realismo mágico en la literatura hispanoamericana”, que faz a revelação do contexto em que foi primeiramente cunhada a expressão. Ela fora empregada por Franz Roh em Realismo mágico. Post- expressionismo. Problemas de la pintura europea más reciente, livro que teve grande êxito no mundo espanhol, traduzido e publicado pela Revista de Occidente em 1927. Roh, autor alemão, referia-se a um novo realismo (pós-expressionista), uma nova arte que visava à “restauração do objecto, sem renunciar, entretanto, aos privilégios do sujeito” e ainda acusava o expressionismo de uma acentuada preferência por “objectos fantásticos, supraterrestres, remotos” (Roh, p.35). Reagia ao mergulho subjectivo operado pelo expressionismo. Esta estética, que posteriormente vem a ter um desdobramento simplificador e indesejável ( no nacionalismo do Terceiro Reich), nada tinha em comum com o novo romance hispano-americano que muito deveu ao expressionismo, mormente a Franz Kafka. O crítico italiano da geração de Roh, Massimo Bontempelli em L’avventura novecentista (1938) usa do mesmo modo, a fórmula “realismo mágico” – que não se sabe se herdou ou não de Roh – para designar a arte italiana pós-futurista, que pretendia não só superar o futurismo, como também o realismo anterior a este. Uslar Pietri conhecera Massimo Bontempelli em Paris e, posteriormente, na Itália, trava contacto com essa estética. Mais tarde vem a conhecer a obra de Roh, difundida através da tradução espanhola. Provavelmente desse conjunto de influências surgiu o emprego de “realismo mágico” designação que, na origem, nada tinha de comum com a nova narrativa que surgia então na América hispânica. Esta nomenclatura, primeiramente proposta por Uslar Pietri, não tinha, portanto, uma base teórica sólida, acrescido o facto de que o adjetivo “mágico” provém de uma outra série que não a literária (da antropologia, de magia), não tendo, portanto, uma tradição na crítica e na história da literatura. Alejo Carpentier propõe, no prefácio de seu livro El reino de este mundo (1949), chamar a esse mesmo fenómeno, tal como o título de seu prólogo “De lo real maravilloso”. Sublinhamos que o termo maravilhoso, com um vasto enraizamento no universo da tradição literária, desde os mitos, melhor se adapta a esse tipo de nomenclatura. O autor aproxima o maravilhoso surrealista de Breton ao “vivenciado” por ele no Haiti. Situa este nas vidas dos homens que fizeram a história do Continente, nos “buscadores da Fonte da Eterna Juventude até certos heróis da primeira hora […]”. Carpentier acentua a excelência do real maravilhoso americano. O prefácio em questão acabou por ser o prólogo do novo romance latino-americano. Luis Leal vem posteriormente a associar o “realismo mágico” ao “real maravilhoso”. Ambos os sintagmas são aparentemente paradoxais, já que juntam os realia e os mirabilia e definem um tipo de discurso narrativo em que ambos se misturam sem solução de continuidade e sem criar tensão (como acontece no género vizinho, o fantástico*). Assim, em Cem anos de solidão de Gabriel García Márquez , o leitor lerá a respeito do personagem Melquíades, o cigano: “Havia estado na morte, com efeito, porém havia regressado porque não pôde suportar a solidão” e não estranhará porque nesse mundo de ficção o espaço da vida e o da morte são contíguos não havendo, portanto antinomia entre um e outro. A partir da aceitação da convenção dessa particular forma de discurso de ficção, nenhuma emoção é suscitada, nem nos personagens e, nem no leitor, em consequência. Jorge Luis Borges será o maior defensor desse tipo de narrativa, mostrando sua superioridade sobre uma arte mimética (ver em:Prefácio a La invención de Morel, obra de Bioy Casares ou em “El arte narrativo y la magia” em Discución, 1932).
Nas duas últimas décadas do século XX, deparamo-nos com a tendência dos cultural studies aproximarem “realismo mágico” e pós-modernismo, uma vez que muitos dos autores reconhecidamente pós-modernistas praticam um tipo de ficção que poderia ser tributária do “realismo mágico”. Dentre os autores mais citados estão Salman Rushdie com Shame, Angela Carter com Nights and the Circus, D. M. Thomas, com The White Hotel, José Saramago e outros. O que se pode aduzir é que de facto muitos autores pós-modernistas usam as possibilidades de trangressão que o realismo mágico abriu para a ficção e o fazem bem, porém dentro de um novo esquema de pensamento. Pois o realismo mágico mesmo surgiu numa época extremamente utópica (e em nada pós-moderna) e traz no discurso as suas marcas. Época em que a América Latina estava sendo desvelada ao mundo, em que mais do que nunca revelava-se a excelência da cultura pré-colombiana (cf. Alfonso Reyes, Octavio Paz), em que a mestiçagem, um dos seus valores étnicos e culturais, começava a ser valorizada (cf. Arturo Uslar Pietri, Fernando Ortiz, J. C. Mariátegui, Ezequiel Martínez Estrada) em que as crónicas da conquista da América estavam sendo lidas como a pré-história da América. Sublinhe-se que o discurso destas, pleno de elementos do maravilhoso, tornou-se um valioso intertexto para García Márquez e outros autores (Rodrigues, 1992). O realismo mágico tem, portanto, um profundo enraizamento cultural numa época e num espaço.
Bib.: Irlemar Chiampi: O realismo maravilhoso. Forma e ideologia no romance hispano-americano. São Paulo, Perspectiva, 1980. Emir Rodríguez Monegal, “Para uma nova poética da narrativa”, in: __, Borges: uma poética da leitura, Trad. Irlemar Chiampi, São Paulo, Perspectiva, 1980. __, El boom de la novela latinoamericana, Caracas, Tiempo nuevo, 1972. Jorge Luis Borges, “El arte narrativo y la magia”, Discusión, Obras completas, 1923-1972. Buenos Aires, Emecé, 1974. __, Prefácio a La invención de Morel, de A. Bioy Casares, na tradução brasileira: A máquina fantástica, Trad. Vera Pedroso, Rio de Janeiro, Expressão e Cultura, 1974. Selma Calasans Rodrigues, Macondamérica. A paródia em Gabriel García Márquez. Rio de Janeiro, Leviatã, 1993. __, O fantástico. Col. Princípios, São Paulo, Ática, 1988. __, “O maravilhoso no Novo Mundo: ecologia e discurso”, in: Angélica Soares org, Ecologia e discurso. Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1992, pp. 115-129. Theo L. D’Haen, “Magical Realism and Postmodernism: Descentering Priviledged Centers”, in: Louis P. Zamora and Wendy B. Faris, Magical Realism: Theory, History and Community. Duhan and London, Duke University Press, 1995, pp. 191-208. Wendy B. Faris, “Sherazade’s Children. Magical Realism and Postmodern Fiction”. Ibidem, pp. 163-190.
Selma Calasans Rodrigues
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