A palavra latina litterae (cujas significações históricas se acham sinteticamente apresentadas no verbete literatura), bem como seus equivalentes nos vernáculos modernos, ao longo da história da cultura ocidental tornou‑se objeto de várias adjetivações que visavam a estabelecer distinções conceituais entre tipos diferentes de discursos.
Até onde pudemos apurar, a adjetivação mais antiga deu origem à expressão humaniores litterae, isto é, "letras mais humanas", acerca da qual nada encontramos além de registros sumários. É de supor‑se, porém, que a expressão tenha surgido no latim medieval, podendo‑se ainda deduzir que designava certo tipo de escritos por oposição provavelmente a duas outras modalidades. Uma delas poderia recobrir‑se através do hipotético termo humanae litterae, pois, afinal, se existem as "letras mais humanas", deve haver também as "letras [apenas] humanas"; sem empregar o último termo, uma definição do primeiro, não obstante a listagern de elementos heterogêneos e anacronicamente aproximados, nos fornece as noções a que parece corresponder cada um deles: "... humaniores litterae (...) designava a atividade da imaginação, diferenciada em poesia, prosa, teatro, ensaio, eloqüência, retórica, por oposição aos textos científicos ou filosóficos" (Moisés, 1978, p. 61). A outra modalidade de discursos a que, segundo parece, as humaniores litterae deviam opor‑se seria constituída por escritos religiosos, o que implicaria em distinção na linha daquela entre litteratura e scriptura, encontrada em Tertuliano e Cassiano (século II d. C.), distinção a que se fez referência no verbete literatura.
Uma segunda adjetivação suscitou a expressão litterae humanae (efetivamente documentada, e que, por isso, para efeito dos argumentos aqui desenvolvidos, não se deve confundir com a hipotética humanae litterae antes referida), segundo René Wellek (1982, p. 13) ocorrente no renascimento, juntamente com lettres humains (século XVI). Sua origem com certeza se funda na tradição aristotélica medieval de segmentação dos saberes: Avicena (século X‑XI) fala de uma "ciência superior", a que chama "metafisica, filosofia primeira ou ciência divina"; Domingo Gundisalvo (século XII) divide as ciências em "humanas ou filosóficas" e "divinas ou da revelação"; Roberto Kilwardby (século XIII) distingue entre “Filosofia das coisas divinas" e “Filosofia das coisas humanas" (cf. Ferrater Mora, 1971, v. 1, p. 288). Tais especulações filosóficas, ao que tudo indica, acabam instrumentalizadas, a partir do século XVI, para o reconhecimento de classes discursivas distintas, estabelecendo‑se oposição bastante clara entre o que se chamou "letras humanas'' e "letras divinas" (ou "ciências humanas" e "ciências divinas", equivalência perfeitamente normal numa época anterior à separação entre ciência e literatura (ver, a esse respeito, o verbete competente).
Essa terminologia, espelhando distinções conceituais construídas com critérios alheios às nossas recentes preocupações relativas à especificidade do discurso literário, acha‑se bem documentada em espanhol e português. Cervantes (1547‑1616), na primeira parte do Dom Quixote (1605), no famoso discurso sobre as armas e as letras (capitulos XXXVII e XXXVIII), assim caracteriza a distinção em apreço: "O fim a que as letras se dirigem (e não falo agora, das divinas, que aspiram sòmente a encaminhar as almas para o céu, fim êste tão sem fim,, que nenhum outro se lhe pode igualar), quero dizer, as letras humanas, é estabelecer com clareza a justiça distributiva, e dar a cada um o que é seu, e o procurar fazer, que as boas leis se guardem e se cumpram: fim por certo êste generoso, e digno de grande louvor (...)" (tradução dos Viscondes de Castilho e de Azevedo. São Paulo: Edigraf, 1960. V. 2, p. 429, grifos nossos). E Francisco Manuel de Melo (1608‑1666) qualifica o destinatário do seu Hospital das Letras (escrito em 1657 e publicado em 1721) — o "sapiente varão Daniel Pinário" — como professor, ora de "letras divinas e humanas", ora de "ciências divinas e humanas".
Sobre as motivações da terceira adjetivação, que redundou na expressão francesa bonnes lettres (documentada, ainda conforme René Wellek [1982, p. 13], no renascimento), bem como no equivalente inglês good letters (segundo a mesma fonte ainda corrente até fins do século XVII), também não encontramos esclarecimentos mais significativos. René Wellek, na passagem já referida, dá a expressão — que situa como sincrônica e equivalente a litterae humanae e lettres humains — como fruto da "clara consciência de uma nova literatura secular" que surgiu com o renascimento, donde é possível concluir que as bonnes lettres ("nova literatura secular") também nomeavam aquele conjunto de discursos definido por sue diferença quanto às "letras divinas". As bonnes lettres, por conseguinte, em relação de sinonímia com lettres humains, não tornam concebível a classe hipotética — digamos — das "letras malignas" (nenhum vislumbre de então impensáveis Fleurs du mal), apenas distinguindo‑se — isto sim — das "letras divinas". Assim, um critério ético iguala as qualidades expressas nos adjetivos boas e humanas — o que é humano é bom e vice‑versa — , equação aliás presente na passagem do Dom Quixote já citada: "O fim [das] letras humanas [...] é procurar fazer, que as boas leis se guardem e se cumpram [...]” (grifos nossos). Para concluir a notícia sobre essa terceira adjetivação a que se prestou a palavra letras, assinale‑se que um dicionário de 1789 atesta a ocorrência em língua portuguesa da forma boas letras (consultamos a segunda edição: Antonio Moraes da Silva. Diccionario da lingua portuguesa. Lisboa: Typographia lacerdina, 1813. 2 v.).
Enfim, venhamos à quarta adjetivação historicamente atribuída ao vocábulo letras, única que compõe expressão ainda não de todo obsoleta: belles lettres. René Wellek situa‑lhe a emergência no século XVII, também como equivalente de lettres humains. Em abono do que diz, lembra que Charles Perrault, em 1666, propõe a criação de uma Academia que contasse com uma seção de belles lettres, que incluiria gramática, eloqüência e poesia (cf. 1982, p. 13‑4). Pode‑se, contudo, entrever nessa preferência que se desloca dos adjetivos humanas e boas pare belas mais do que simples reforma de nomenclatura. Nesse sentido, numa época em que os discursos se acham sob controle da disciplina retórica, é possível supor que belas, como atributo caracterizador de certa modalidade das letras, indicia a supervalorização de uma das virtudes da elocução segundo aquela disciplina — o ornato — em detrimento das demais (pureza, clareza, correção, boa colocação). Essa interpretação do ornato retórico como exigência de beleza parece compor‑se ainda com a garantia de um lugar para o "coração" na pedagogia das letras, superando‑se desse modo a referência única ao "espírito" (em outros termos, a inteligência concede parceria à sensibilidade na formação literária). Sinal dessa espécie de consórcio entre a beleza e a sensibilidade no trato com as letras encontramos cristalizado no título de obra publicada em 1726‑28, reunindo conferências proferidas por Charles Rollin em 1688 no Collège Royal de Paris: De la manière d'enseigner et d'étudier les belles‑lettres, par rapport à l'esprit e au coeur (cf. em Smith, 1985, p. 30).
Achamos necessário, agora, associar o rastreamento da expressão belles lettres com a do termo beaux arts, que lhe é tão próximo sob todos os aspectos. Embora tenhamos encontrado caracterização que o tome como "termo diferencial criado no século XVII" (Fontius, 1983, p. 98), o fato é que o primeiro registro que dele localizamos é de 1746: trata‑se do livro Les beaux- arts réduits à un meme principe, de Batteux. No entanto, independentemente da questão cronológica, convém fixar que o conceito de beaux arts introduzia novo princípio na classi£icação das artes. Assim, em vez da distinção medieval entre as artes mechanicae e as artes liberales — ou seja, entre ofícios servis e atividades intelectuais — , as beaux arts apontavam para uma outra esfera, em que a diferença entre perícia manual e proficiência racional se neutralizava numa atividade que as transcendia: "Antes que dança, música, escultura, arquitetura, pintura e poesia fossem integradas como um sistema conjunto de artes, teve de ser vencido o preconceito contra o trabalho manual, que se originou na classe dos donos de escravos. Enquanto vigorava a tradição do sistema antigo das artes liberales, que repousava no desprezo contra o trabalho manual, sinal de escravidão, não se podia falar em uma teoria estética abrangente. Para uma tal teoria, faltavam ainda as premissas básicas à Renascença, que elevou as artes visuais do estado de artes mecânicas para o de artes livres. O modo como Da Vinci defendia a pintura como 'ciência' deixa isto bem claro" (Fontius, 1983, p. 101). Ora, sem discordar dessa argumentação sociológica de Martin Fontius, julgamos que a rejeição, no que tange às artes, dos atributos “mecânicas" e "liberais", em favor de "belas", também se explica por um influxo sobre as artes da noção de beleza que começou a impor‑se originariamente no campo das letras. Assim, desde fins do século XVII, como vimos, a priorização da idéia retórica de ornato, que acaba então conduzindo à de belo enquanto predicado apreensível pela sensibilidade (e não mais, à maneira clássica, enquanto elemento inteligível situado no mesmo plano das demais virtudes da elocução — pureza, clareza, correção, boa colocação), parece ter transbordado do âmbito das letras para uma reflexão mais ampla, que acaba vislumbrando nas artes um setor privilegiado para consideração da beleza, donde a constituição do conceito genérico de belas artes. Estas então compõem um sistema cuja referência primeira parece terem sido as belas letras (conceito já naquela altura distinto de duas artes liberais suas antecessoras, gramática e retórica), e que absorve uma outra antiga arte liberal, a música (que então se afasta de seus pares do quadrivium — aritmética, geometria e astrologia), além de atrair outras artes que até aquele momento desconheciam maiores dignidades filosóficas: pintura, escultura, arquitetura e dança. Desse modo se perfaz, no século XVII, o conjunto que veio a charnar‑se belas artes, instaurando‑se assim a idéia moderna de arte: não mais ofício, profissão, perícia ou técnica, cujo domínio requer tão‑somente adestramento em regras, porém elevada manifestação das faculdades subjetivas de criar, sentir e perceber, aptas ao trato delicado da beleza. Para melhor documenter esse efeito expansivo das belas letras sobre as belas artes, vejamos uma seqüência de pontos referenciais dos séculos XVII e XVIII: 1 ‑ proposição por Charles Perrault de uma seção acadêmica denominada belles lettres (1666 [cf. Wellek, 1983, p. 13]); 2 ‑ conferências de Charles Rollin no Collège Royal de Paris (1688), depois publicadas sob o título De la manière d'enseigner et d'étudier les belles‑lettres, par rapport à l’esprit et au coeur (1726‑28 [cf. em Smith, 1985, p.30]); 3 ‑ Essai sur le beau (P. André, 1711); 4 ‑ Principi di una scienza nuova dintorno alla comune natura delle nazioni (Vico, 1725 e 1730); 5 ‑ Meditationes philosophicae de nonnullis poema pertinentibus (Baumgartem, 1735); 6 - Metaphysica (Baumgartem, 1739); 7 ‑ Les beaux‑arts réduits à un meme principe (Batteux, 1746); 8 ‑ Aesthetica (Baumgartem, 1750‑58); 9 ‑ Sur le beau (Diderot, 1751); 10 ‑ Analysis of beauty (Hogarth, 1753); 11 ‑ The sublime and the beautiful (Burke, 1756); 12 ‑ conferências de Hugh Blair na Universidade de Edimburgo (1759 [cf. em Smith, 1985, p. 29]), publicadas depois sob o título Lectures on rhetoric and belles lettres (1783); 13 ‑ conferências de Adam Smith na Universidade de Glasgow (1762‑63), recolhidas no manuscrito Notes of Dr. Smith's rhetorick (descoberto em 1958), depois publicado em 1963 sob o título Lectures on rhetoric and belles lettres delivered in the University of Glasgow by Adam Smith, reported by a student in 1762‑63; 14 ‑ De la belleza ideal (Artega, 1789); 15 ‑ Kritik der Urteilskraft (Kant, 1790).
As belas letras, assim, segundo a hipótese aqui esboçada, deflagradoras de um sistema no qual depois se integram e se consolidam — sistema dito "estético", a partir da palavra cunhada por Baumgartem em seu opúsculo de 1735, e que se tornaria título de sua obra de 1750‑58, já referidos —, apontam, desde fins do séulo XVII e sobretudo ao longo do XVIII, para uma nova partilha do campo das letras: o critério teológico‑ético que fundamentou partilhas anteriores — humaniores litterae, litterae humanae, letras humanas, letras divinas, boas letras — se retrai em favor de um critério estético, que passa a distinguir de maneira cada vez mais nítida entre as letras consideradas belas (em que prevalece o ornato assimilado a beleza e sensibilidade) e as letras que poderíamos chamar filosóficas ou científcas (em que predomina a clareza entendida como apanágio da razão objetiva).
A expressão belas letras, porém, não se revelaria longeva. Desde o início do século XVIII começa a sofrer a concorrência da palavra literatura, a qual, já na segunda metade daquele século — e sobretudo a partir do século XIX — impõe‑se na maioria das línguas ocidentais para designar certo segmento dos discursos escritos a que poderíamos chamar — num gesto de simplificação que julgamos aceitável para nossos objetivos — as letras artísticas, caracterizadas por contraste com as letras filosóficas e as letras científicas.
Ao contrário, no entanto, dos demais ancestrais do termo literatura, belas letras, como já afirmamos, é o único não de todo obsoleto. Se excetuarmos suas raras utilizações residuais na acepção tradicional (por exemplo, Kayser, 1967 [1948], v. 1, p. 9), permanece empregado apenas como expressão pejorativa, num processo de degradação semântica análogo ao que se passou com a palavra retórica, com a qual aliás, segundo demonstramos, está relacionado. Assim, desde o romantismo belas letras veio tendo sua propriedade semântica crescentemente posta em xeque, mediante várias experiências de pendor revolucionário e como tal contrárias a qualquer consenso quanto à idéia de beleza e sua identificacão com a de arte. Passou, assim, a prestar‑se a um emprego irônico e depreciativo, voltado para a desqualificação de concepcões artísticas que se consideram, quando muito, apenas corretas e bem comportadas, porém sempre produtos diletantes, conservadores, frívolos e reacionários.
BIB.: Baumgartem, [Alexander Gottlieb]. Reflexiones filosóficas acerca de la poesia. Madrid: Aguilar, 1964; ‑‑‑‑‑‑. Estética; a lógica da arte e do poema. Petrópolis [Rio de Janeiro]: Vozes, 1993; Ferrater Mora, José. Ciencias (classificación de las). In: ‑‑‑. Diccionario de filosofía. Buenos Aires: Sudamericana, 1971. V. 1, p. 287‑90; Fontius, Martin. Literatura e história: desenvolvimento das forças produtivas e autonomia da arte. In: Lima, Luiz Costa, sel., introd. e revisão técnica. Teoria da literatura em suas fontes. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1983. V. 1, p. 84‑187; Kayser, Wolfgang. O objecto da ciência da literatura. In: ‑‑‑. Análise e interpretaçdo da obra literária. Coimbra: Arménio Amado, 1967. V. 1, p. 5‑14; Moisés, Massaud. Belles‑Lettres. In: ‑‑‑. Dicionário de termos literários. São Paulo: Cultrix, 1978. p. 61; Smith, Adam. Lectures on rhetoric and belles lettres. Indianapolis [USA]: Liberty Classics, 1985; Wellek, René & Warren, Austin. Natureza da literatura. In: ‑‑‑. Teoria da literatura. Lisboa: Europa‑América, 1962. p. 25‑34; Wellek, René. The attack on literature. In: ‑‑‑. The attack on literature and other essays. Chapel Hill: The University of North Carolina Press, 1982. p. 3‑18.
Roberto Acízelo de Sousa
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