Herói
Do grego ‘hrvV, pelo latim heros, o termo herói designa o protagonista de uma obra narrativa ou dramática. Variando consoante as épocas, as correntes estético-literárias, os géneros e subgéneros, o herói é marcado por uma projecção ambígua: por um lado, representa a condição humana, na sua complexidade psicológica, social e ética; por outro, transcende a mesma condição, na medida em que representa facetas e virtudes que o homem comum não consegue mas gostaria de atingir. Para os Gregos, o herói situa-se na posição intermédia entre os deuses e os homens. Por isso, Hesíodo, distinguindo (Os Trabalhos e os Dias, 156-173) cinco idades da vida humana, numa perspectiva decadentista, intitula a quarta, a seguir à do ouro, da prata e do bronze, como a dos heróis, antes da de ferro, ou da suprema degradação. Por um lado, representam a degradação dos desuses; por outro, constituem uma promoção dos homens. Charles Baudoin, reconhecendo ao herói uma origem divina, caracteriza a sua existência a partir de uma infância misteriosa e oculta, em contraste com a sua vida adulta, constituída por provas libertadoras, como combates contra monstros, e com a obtenção da imortalidade. É toda uma projecção mítica e lendária que rodeia esta imagem solar e redentora. Héracles, filho de Zeus, pai dos deuses, e de Alcmena, simples mulher, protagoniza como nenhum outro este arquétipo do herói grego, o qual, após a vitória sobre os doze trabalhos, adquire a imortalidade olímpica. De resto, é esta faceta bélica que caracteriza sobremaneira o herói épico, como sublinha P. Miniconi, ao distinguir na epopeia: a preparação (apresentação do herói e descrição das armas); o combate (peripécias, espectadores, proezas); o desenlace vitorioso (despojos, injúria aos cadáveres inimigos, jogos fúnebres). Os próprios deuses não escapam ao conflito, envolvendo-se em teomaquia, Titãs (Hesíodo, Teogonia, 617-735) e Gigantes (Píndaro, Nemeias, I, 67), contra Zeus na demanda do Olimpo, e tomando partido por um dos lados do conflito humano (Ilíada, XI, 11-14). Deste modo, a epopeia, hermenêutica heróica por excelência, espelha o paradigma cosmológico da aventura humana.
A ambiguidade do herói grego patenteia-se num conjunto de características antagónicas: a força e beleza de uns (Héracles, Aquiles, Orestes, Pélope) contrasta com o aspecto teriomórfico ou deficiente de outros (Licáon, “o lobo”; Cécrope, o andrógino; Tirésias, o transsexual; Héracles, o travestido, com três filas de dentes). O seu excesso sexual (violação, incesto), a violentação sacrílega de deusas (Órion, Actéon, Íxion), reveladora da sua hybris, são traços de uma época primordial que os torna semelhantes aos deuses: são fundadores de cidades, inventores de leis, regras sociais e ofícios, são associados a ritos de iniciação e aos mistérios, tornam-se génios tutelares que protegem contra invasões, epidemias e outros flagelos, tornam-se imortais, sendo transportados às ilhas dos Bem-Aventurados ou ao Olimpo. O herói homérico não foge a este paradigma: Agamémnon é o chefe todo poderoso dos Aqueus, mas também o ávido instigador da cólera de Aquiles, que põe os Gregos em perigo e causa a morte de Pátroclo; Ulisses é, com Epeu, o astuto inventor do ardil do cavalo que conduzirá à ruína de Tróia, o corajoso e sábio viajante que ultrapassa os perigos do mar, das sereias, de Polifemo, mas também o desencadeador da cólera de Possídon e os seus homens os sacrificadores dos bois sagrados de Hélio, lamenta com saudade o afastamento de Ítaca e Penélope, mas não consegue facilmente desenvencilhar-se dos amores de Circe e de Calipso. A lição de Homero, segundo Mircea Eliade, é a capacidade de assumir e ultrapassar a finitude e a precariedade da vida humana: “viver totalmente, mas com nobreza, no presente. [...] Forçado que foi pelos deuses a não ultrapassar os seus limites, o homem acabou por realizar a perfeição e, portanto, a sacralidade da condição humana. Redescobriu, pois, dando-lhe forma definitiva, o sentido religioso da “alegria de viver”, o valor sacramental da experiência erótica e da beleza do corpo humano, a função religiosa de todo o júbilo colectivo organizado” (História das Ideias e Crenças Religiosas, T. I, p. 238).
Na época alexandrina, Os Argonautas, de Apolónio de Rodes (295-215 a.C.), numa síntese entre a Ilíada e a Odisseia, apresentam as aventuras de Jasão e seus companheiros, em demanda do velo de ouro, na Cólquida, Mar Negro. Herói humano, seduzido por Medeia, filha do rei Eetes, Jasão obtém, por seu intermédio mágico e traição familiar, o objecto tão ambicionado, guardado pelo dragão sempre vigilante na floresta. Irritado, Zeus infligirá aos aventureiros o castigo de um longo regresso, enquanto a paixão do herói pela feiticeira lhe trará, no seu país, trágicos dissabores.
Na mesma época, os Romanos são iniciados na poesia épica: as guerras púnicas, entre Roma e Cartago, são cantadas por Névio (Poenicum Bellum) e por Énio (Annales). Mas a romanidade adquire a sua expressão mais alta no poema Eneida, de Virgílio, cujo herói Eneias, filho de Vénus e do mortal Anquises, representa simbolicamente a fundação e a própria identidade de Roma e do seu povo, com os seus valores e limitações, sendo a sua figura historicamente actualizada no imperador Octávio César Augusto: a fides (do verbo piare, apaziguar, apagar uma falta), ou fidelidade à família, à gens e à pátria, expressa no prestígio religioso do Direito; a pietas para com os deuses (religião), para com a família (obediência), para com a cidade (civismo), para com o Outro, mesmo o estrangeiro (ius gentium). O sentido de missão que conduz Eneias das cinzas de Tróia, com o pai às costas e o filho Ascânio, transportando os Penates, estando também na origem da sua renúncia ao amor da rainha Dido, de Cartago, as suas lutas com Turno, rei dos Rútulos, e a sua aliança com o rei Latino, fundamenta o sentido político e civilizacional do Império, associado à pax romana: tu regere imperio populos, Romane, memento / (hae tibi erunt artes), pacisque imponere morem, / parcere subiectis et debellare superbos (Aen, VI, 851-853 – Tu, romano, sê atento a governar os povos com o teu poder / - estas serão as tuas artes – a impor hábitos de paz, / a popar os vencidos e derrubar os orgulhosos). Por sua vez, os heróis livianos da fundação de Roma estão eivados de marcas de grande ambiguidade moral: Rómulo assassina Remo, tornando-se único senhor da nova cidade; Tarpeia deixa-se corromper, entregando Roma aos Sabinos, em troca de promessas de ouro, sendo, por isso, apedrejada; a violação de Lucrécia por Sexto Tarquínio, a qual se suicida em defesa da honra, dá origem à queda da monarquia e à instauração da República. Por isso, Michel Serres encontra na tragédia o facto primordial que permite explicar o seu crescimento: “D’ un cadavre, toujours, naît quelque unité: groupe, classe, ville, règne, une ère nouvelle, une autre fausse nouveauté [...] La mort est le moteur perpétuel de ce répétitif, exactement son retour éternel” (Rome, le livre des fondations, 1983, p. 278). Lucano (39 a.C.-65), na sua Farsália, escolhe a guerra civil entre Pompeio e César para apresentar na figura de César um anti-herói, guerreiro e cínico, que combate outro anti-herói, envelhecido, desabituado, na paz, da função do protagonismo político. Roma, vítima desta divisão destrutiva, sofre as consequências do caos: à pax virgiliana, Lucano opõe a libertas. As Púnicas, de Sílio Itálico, Os Argonautas, de Valério Flaco, a Tebaida e a Aquileida, de Aquiles Estácio, retomarão, no fim do século I, o classicismo grego (o ciclo troiano voltará, no século IV), enquanto, entre os séculos III e IV, o herói romano será reafirmado na luta do Império contra os Bárbaros.
O poema védico Mahâbhârata, história da luta entre os cem filhos de Kuru (Kauravas) e os cinco filhos de Pandu (Pandavas), representa o conflito entre o Bem e o Mal, entre os deuses (devas) e os demónios (asuras), entre Indra (guerreiro demiúrgico, que personifica a energia vital) e o dragão Urtra (símbolo do caos), até à vitória do Bem, assegurada por Vixnu-Krixna. No poema Râmâyana, o casamento entre Râma e Sîtâ, avatares de Vixnu e Lakxmî, representa a união hierogâmica entre Céu e Terra. Os raptos, as lutas fratricidas, a hostilidade entre pais e filhos, a privação da herança patrimonial são marcas destes dois poemas hinduístas, que apontam para o restabelecimento da ordem cósmica (dharma), a partir da conjugação de esforços entre os heróis e os deuses, com a morte, fusão entre a alma individual (âtman) e a universal (brahman).
Na literatura chinesa clássica, o conceito de herói difere substancialmente nas duas principais correntes que sustentam a sua mundividência: o Tauísmo, expresso no livro Tau-Te-King, e o Confucianismo. Para o primeiro, o herói-santo é aquele que, inteiramente despojado da existência terrena (wu-wei), vive num êxtase permanente; para o segundo, os heróis-civilizadores Yau, Chun e os reis da dinastia Tcheu, Wen e Wu ilustram com o seu exemplo o modo de atingir o caminho do Céu, através da educação, da disciplina e da intervenção social: a bondade, a sabedoria, a coragem, a justiça, a religião.
Na literatura persa, Firdusi (932-1021), no seu Xahnamed (Livro dos Reis), compendia a tradição mítica do Memorial de Zarêr, na qual heróis de cinquenta reinos alternam vitórias com insucessos, como Djemxid, que cede o trono ao tirano Zohhak; ou Rustem, que recebe de uma ave a planta mágica com que fabricará a flecha com a qual matará Isfendiar; ou Iskender, que explorará e descobrirá o mundo com suas viagens; ou Kei Khosru, que, no apogeu da sua glória, desapareceu no deserto.
Na literatura africana, Zong Midzi, n’ O Mvett, cantado por Zvé Ngema, enfrenta, tal como Prometeu na mitologia grega, os imortais de Engong, mestres da metalurgia e da medicina. Ao tentar imortalizar-se, junto dos seus antepassados, acaba por morrer, incapaz de ultrapassar a fronteira entre as categorias ônticas do Universo. Por sua vez, na obra Chaka, de Tomás Mofolo, o protagonista, rei dos Zulos, munido de apoio mágico, domina até à exaustão todos os inimigos, numa ambição desmedida que atinge a própria demência.
Nas canções de gesta, o herói carolíngio recebe a sua glorificação do martírio, numa transformação do insucesso em vitória espiritual e temporal, na metamorfose da fatalidade em providência: os anjos transportam a alma de Rolando ao paraíso, enquanto Gabriel ajuda o imperador no seu duelo com Balignant (Chanson de Roland); Isembart, ultrajado pelo imperador Luís, seu tio, refugia-se na corte do rei viking Gormont, abjurando a sua fé, morrendo acusado pelos dois lados (Gormont e Isembart); os Sarracenos matam Viviano (La Chanson de Guillaume). A ambiguidade do herói, arquétipo da condição humana, também é notória: Rolando é orgulhoso e santo; o seu martírio redime o seu pecado, numa oferenda sacrificial a Deus e aos companheiros, transformando a epopeia em hagiografia.
Na canção dos Nibelungen, Sigfrid, filho do rei da Neerlândia, depois de matar dragões e libertar virgens, traz a infelicidade a Worms, sendo também ele morto por Hagen, às ordens da cunhada, por se haver apoderado do tesouro dos Nibelungen. A sua viúva, Kriemhild, desposa Etzel, rei dos Hunos, tornando-se assassina dos cunhados e acabando por ser morta. No poema Kudrun, Hagen, depois matar os monstros que o haviam prendido, casa com Ilda, filha do rei das Índias. A sua filha é raptada pelo rei Hetele; dessa união nasce Kudrun, que, por sua vez, também é raptada por Hartmut, depois de uma luta com Hetele, seu pai, durante a qual encontra a morte, sendo, mais tarde libertada pelo irmão e pelo noivo. O ouro, símbolo do poder, torna-se, assim, na epopeia germânica agente e móbil de maldição, atingindo uma família inteira, em gerações sucessivas, transformando heróis em anti-heróis, fascinados pelo excesso da perversão.
No século XII, o romance carolíngio é substituído na Aquitânia pela Matéria da Bretanha, na corte do rei Artur e dos cavaleiros da Távola Redonda, envolvendo raízes célticas com elementos cristãos, gnósticos e islâmicos. A Demanda do santo Graal, na versão da pós-vulgata, que dará origem a uma tradução portuguesa, constitui um dos mais belos repositórios da cultura cavaleiresca europeia, no contraste entre os heróis: da união adúltera de Lancelot e da rainha Genebra, esposa do rei Artur, nasce o cavaleiro virgem Galaaz, que realiza, com Boorz e Persival, o ideal humano da demanda da felicidade ou da perfeição.
Enquanto se multiplicam as obras influenciadas pelos ciclos épicos, em especial o carolíngio, a Espanha produz o Cantar de mio Cid, cujo herói, Ruy Diaz de Bivar, se salienta na guerra da reconquista cristã aos Mouros. O Poema de Rodrigo continuará esta gesta da reconquista, enquanto compilações em prosa nos reúnem fragmentos da epopeia oral, como Os Sete Infantes de Lara. Mas é o Romanceiro que, a partir do século XIV, transmite, de geração em geração, até à actualidade, a tradição oral do romance épico da Ibéria. Em Portugal, Garrett é o pioneiro, ainda que não fiel transmissor, desta gesta tradicional (Romanceiro), sendo continuado por Teófilo Braga.
Na Divina Comédia, de Dante, síntese da cultura medieval, em transição para o Renascimento, o narrador é conduzido por Virgílio, símbolo da cultura greco--romana, ao Inferno e ao Purgatório; mas o acesso ao Paraíso é-lhe vedado, sendo substituído por S. Bernardo, símbolo da teologia, e por Beatriz, sua dama, que surge gloriosa no carro da Igreja, recebendo, então a revelação da plenitude: a visão disfórica da sociedade da época cruza-se, na viagem iniciática, com a tensão anímica das aspirações profundas do ser humano, representado na figura do peregrino.
Até à sátira de Morgante Maggiore, de Luigi Pulci (1432-1484), em Itália e de Cervantes, no seu D. Quijote de la Mancha, em Espanha, o ideal cavaleiresco mantém a adesão do leitor renascentista, quer em relação a romances ou novelas dos séculos XIV e XV, como o Amadis de Gaula, atribuído ao português Vasco Lobeira, com múltiplas versões e traduções, ou o, quer em relação a obras do século XVI, como o Palmeirim de Inglaterra, de Francisco de Morais, em Portugal. No poema de Pulci, Carlos Magno é abandonado por Rolando e seu primo Renaud, enquanto o seu invencível companheiro, o gigante Morgante, morre, mordido por um caranguejo. Na obra de Cervantes (1611), é o próprio ideal cavaleiresco que, entontecido pela febre da leitura de novelas de cavalaria, é ridicularizado na figura grotesca do cavaleiro da triste figura, apaixonado por uma pretensa dama, Dulcineia del Toboso, que não passa de uma figura do povo, utopicamente apostado em esgrimir contra moinhos de vento ou exércitos de rebanhos de carneiros, em contraste com a rotunda e materialista figura de seu escudeiro, Sancho Pança, ambicioso de poder, nem que seja na fantástica ilha de Barataria.
Os ecos do ciclo carolíngio no Renascimento dão origem à composição de duas epopeias centradas no herói protagonista da Chanson de Roland: no Orlando Amoroso, de Boiardo (1441-1494), o protagonista, rodeado de magos, a tudo renuncia, por amor de Angélica, filha do rei do Cataio; no Orlando Furioso, de Ariosto (1474-1535), o herói enlouquece, ao dar-se conta de que Angélica, depois de presa por corsários e salva de uma orca pelo sarraceno Rogério, ama Medor, futuro rei do Cataio.
Num tom conciliador entre os paradigmas da epopeia clássica e a temática nacionalista e ainda numa atmosfera cavaleiresca, apoiada na ideologia de cruzada, n’ Os Lusíadas (1572) de Luís de Camões (c. 1524-1580), o herói colectivo do peito ilustre lusitano é metonimicamente representado pelo herói singular Vasco da Gama, o Capitão-mor das naus que demandaram a Índia, pela rota do Cabo, em 1497-98, dez anos antes descoberta por Bartolomeu Dias. Secundados por Vénus, mãe de Eneias, representante da civilização greco-romana (europeia, portanto), em oposição à resistência de Baco, identificado com as civilizações orientais (hinduísta e muçulmana), os novos argonautas, depois de enfrentarem mil perigos (da natura e da cultura), alcançam, por mares nunca dantes navegados, o porto perseguido, na mira de novos velos de ouro (as especiarias), mas também a edificação de novo reino, baseado numa nova proposta civilizacional e religiosa, sendo alegoricamente recompensados na ilha de Vénus, símbolo da glória apoteótica das armas e das letras, na síntese clássica (platónica e aristotélica) e cristã da virtus.
Igualmente, Torquato Tasso (1544-1595) propõe uma aliança harmoniosa entre a humanitas greco-latina e o nacionalismo, inspirado no ideal de cavalaria e de cruzada, nas epopeias Jerusalém Libertada (1575) e Jerusalém Conquistada (1593), acentuando nesta última a orientação pós-tridentina, figurando alegoricamente a alma humana no herói Godofredo, o corpo, nos soldados, as fasculdades em Tancredo e Renaud, as tentações em Armida e Ismen.
No século XVII (1667), destaca-se a epopeia Paradise Lost, de John Milton, centrada no paraíso terrestre, alegoria da condição humana, cujo herói, Jesus Cristo, vence a adversário, Satanás, restabelecendo o equilíbrio e a harmonia universais, perdidos pelo pecado original, de Adão e Eva.
No século XVIII, salientamos o poema épico de Voltaire, La Henriade (1728), que, inspirado na Eneida, de Virgílio, e na Farsália, de Lucano, canta os combates protagonizados por Henrique IV, impregnado, porém, do novo espírito racionalista das Luzes, da tolerância e do relativismo histórico.
O herói da tragédia clássica, mantendo, embora, em comum com o épico a dignidade da sua origem e da sua missão, distingue-se, todavia, dele pela carga do fatum, que condiciona a sua liberdade de acção e, sobretudo, o desenlace catastrófico da sua vida: o optimismo libertador do épico contrasta com o pessimismo caótico, aniquilador, do trágico; o efeito catártico sobre o leitor/espectador, a partir do terror e da piedade, na tragédia, tem como, compensação, na epopeia, a admiração e o êxtase do herói perante a maravilha e a transcendência do magnífico. Opostos e complementares, os dois tipos de heróis configuram, como diz Daniel Madelénat, duas representações do homem: “une hétérotélie conjoncturelle, opposition momentanée avec le monde (dans l’épopée); une hétérotélie structurelle, scission définitive entre le moi et le monde, et à l’intérieur du moi (dans la tragédie)” (1986, p. 126).
Herdeiro da epopeia, sobretudo da Odisseia e do Râmâyana, o romance, com tonalidades mais doces e maior variedade de aventuras, numa linguagem mais coloquial e vulgar (o próprio nome designa a língua românica, à semelhança do latim), consentânea com a prosa, configura um herói plenamente humano, complexo de virtudes e defeitos, mais caracterizado em termos psicológicos e na sua dimensão sociológica. A relação homem-mulher, na sua exploração erótica, adquire, no romance, sobretudo moderno, tal profundidade que, na linguagem corrente, tal relação passou a denominar-se, precisamente, romance.
O século XVII ibérico introduz a novidade do herói pícaro (Lazarrillo de Tormes, Guzmán de Alfarache, a pícara Justina, etc.), espelho de uma sociedade de contrastes entre aristocracia e plebe, entre fausto e miséria, entre realidade e aparência, entre honra e fanfarronice.
O herói romântico, por um lado, encontra no romance histórico a moldura idealizada para representar, com função pedagógica, o novo modelo, de acordo com o mítico regresso à idade de ouro medieval, que a sociedade liberal e burguesa pretende apresentar, em alternativa ao herói clássico; por outro, serve-se do drama, para expressar o arquétipo da sociedade da época, votado ao sofrimento e à perseguição trágica.
O herói naturalista, em oposição ao romântico, alicerçado em bases científicas, deixa a sua feição modelar para ser apresentado como objecto de estudo, fruto da hereditariedade, da educação e do meio, espelho dos conflitos psico-sociais e duma época em crise.
No século XX, o romance e o teatro existencialistas põe em causa a própria noção de herói, tanto numa perspectiva social como filosófica, já que o homem surge como um ser sem sentido, num mundo absurdo (Sartre, Beckett, Valle-Inclán, Virgílio Ferreira), enquanto o realismo socialista promove um novo tipo de herói: operário, sindicalista, comprometido no campo social e no político, denunciador da corrupção e da opressão, empenhado na sua transformação.
ANTI-HERÓI; PROTAGONISTA; PERSONAGEM
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António Moniz
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