Teoria da Literatura

É hoje em dia extraordinariamente vivo e dinâmico o campo disciplinar conhecido por Teoria da Literatura. Tão vivo e dinâmico que os livros e artigos com ela relacionados se sucedem a um ritmo impressionante, criando uma complexa genealogia do saber cujos índices de actualização se negam muitas vezes na própria ineficácia instrumental da abundância. Chegámos a uma fase em que se torna necessário publicar espessos volumes de referências bibliográficas (L. Orr, 1989), ou em que se multiplicam as Introduções, Antologias ou Selecções do tipo Reader’s Guide (veja-se, por exemplo, R. Selden, 1989).

Ao ser atravessada por um diversificado corpo de saberes sugeridos pelo reconhecimento da própria diversidade da literatura e da recepção da literatura, a teoria literária contemporânea afirma-se por interesses múltiplos e caminhos variados. Este é um campo de tal maneira vivo e dinâmico, são de tal maneira múltiplos e variados os seus caminhos, que só por ignorância ou presunção alguém se arriscaria a propor, nos nossos dias, uma definição de teoria literária. Paul de Man, que tinha pouco de presumido e ainda menos de ignorante, reconheceu esta mesma realidade num texto tão lúcido quanto mal compreendido pelo establishment académico norte‑americano. Nesse texto, Paul de Man tentava, muito simplesmente, «explicar porque é que o principal interesse teórico da teoria literária consiste na impossibilidade da sua definição» (1986: 3).

A diversidade dos seus caminhos, bem como a ausência de uma «pureza» científica para os cânones gerais de racionalidade que explicitam a sua configuração disciplinar, revelam a teoria literária segundo duas grandes figuras. Por um lado, a figura que nos mostra que é através de uma irrecusável força inclusiva que a teoria literária não só justifica a sua coalescência face a teorias particulares da literatura e da recepção da literatura, mas também oferece aos estudos literários uma base racional a partir da qual se pode articular a crescente variedade de áreas por eles cobertas. Por outro lado, a figura que nos assegura que é pela incondicionalidade do discurso impuro da teoria literária que não só se apresentam as ambivalências próprias à reprodução da realidade por parte da literatura e da leitura crítica da literatura, mas também se harmonizam as diferentes abordagens intelectuais suscitadas por essa mesma realidade.

Apesar do reconhecimento da natureza “impura” da teoria literária, creio que vale a pena indicar (arriscar) um entendimento genérico da sua funcionalidade no domínio dos estudos literários. Segundo creio, o entendimento mais simples é não só o mais eficaz, mas também o que mais perto se encontra do entendimento que dela tiveram progenitores canónicos como Boris Eixenbaum e René Wellek. Assim, por teoria literária pode entender-se a racionalização sistemática de um conjunto de assunções acerca das propriedades do texto literário e das relações deste com a sua cultura de origem, o seu autor e o seu intérprete.

Este entendimento apresenta três vantagens. Por um lado, salvaguarda a especificidade do objecto literário sem anular, no entanto, as suas várias vertentes psicológicas, sociológicas e históricas. Por outro lado, permite introduzir a problematização da crítica literária não só enquanto modo de leitura e interpretação dos textos, mas também enquanto conjunto de projecções imaginativas acerca da natureza da literatura. Finalmente, aquele entendimento traça fronteiras intelectuais entre aquilo que é o estudo da literatura como objecto comunicativo de uma cultura, e aquilo que é o estudo de uma cultura que encara a literatura como mera representação das estruturas de poder actuantes nessa mesma cultura. Dito de outra maneira e clarificando o meu objectivo, insistir na natureza intrinsecamente literária do objecto da teoria da literatura equivale a separar desde início a teoria literária da chamada teoria crítica, tal como esta é actualmente entendida.

1. Do pensamento literário à teoria literária

Aristóteles é quem normalmente protagoniza a figura de pai da teoria literária para muitos investigadores impregnados do espírito científico do nosso século ou continuado­res do espírito positivista por que a Literaturwissenschaft se afirmou no imaginário oito­centista. Centrando‑se, como observa Robert C. Davies, mais nas relações do que no sen­tido referencial (Davies, 1985: 51), as virtualidades estruturais da Poética parecem oferecer um fascínio irresistível às várias versões da «orientação teórica objectiva» dos estudos literários—recorrendo tacticamente a uma das quatro orientações (as outras são a mimética, a expressiva e a pragmática) em que M. H. Abrams divide a crítica literária, e que caracteriza do seguinte modo: «A orientação objectiva, que em princípio encara a obra de arte isolada de todos estes pontos de referência [o leitor, o artista e o mundo], analisa‑a como uma enti­dade auto‑suficiente constituída pelas suas partes nas suas relações internas, e dispõe­‑se a julgá‑la unicamente por critérios intrínsecos ao seu próprio modo de ser.» (M. H Abrams, 1953: 26).

Por exemplo, E. Stankiewicz, um eslavista formado na escola da linguística estrutu­ral impulsionada pelos trabalhos dos formalistas russos e checos (cf. Stankiewicz, 1978), depois de reconhecer que Aristóteles «foi o primeiro a manter que o valor da arte reside na própria arte» (1977:59), afirma inequivocamente que Aristóteles «é o fundador da poética teórica» (loc. cit.). No entanto, também se pode poderá afirmar, seguindo um investigador como John Jones (1980: 40‑1 e 50‑4), que a orientação aristotélica para sal­vaguardar o prazer que o homem tem na fruição de um discurso rítmico e melodioso (que assegura uma das modalidades de manifestação da ideia de que o valor da arte reside na própria arte) se articula, no quadro teleológico da filosofia aristotélica, com o reconhecimento mais substancial do poder persuasivo da poesia, sobretudo através da constituição desta em instrumento pedagógico pela capacidade que tem de imitar as acções humanas, encorajando as virtudes (eudamonia) e desencorajando os vícios. Ou seja, a orientação aristotélica situar‑se‑ia no âmbito disciplinar da retórica, embora já num quadro suficientemente elástico de modo a potenciar a fusão da própria retórica, juntamente com outros saberes, naquilo a que nos nossos dias se chama äcrítica literária.

Poder‑se‑á argumentar que não devemos esquecer nem escamotear o facto de que a importância de Aristóteles decorre sobretudo do reconhecimento que este autor revela de que a literatura tem uma estrutura interna muito própria. Neste sentido, não pode ser acidental a sua consideração da intriga (mythos) em termos como, por exemplo, «a união estrutural das partes» (Poética: 1451a 30) ou «um organismo vivo» (id.: 1459a 21), bem como os princípios de desenvolvimento que lhe são inerentes. Porém, será que estamos perante uma empresa autónoma na sua individuação teórica ou perante uma validação da obra poética através da sua especificidade de trabalho (poein), de modo a encontrar as bases necessárias a um julgamento estético? Se escolhermos a segunda resposta, como parece mais legítimo, então teremos que reconhecer, mais uma vez, a instância funda­mental da preocupação crítica de Aristóteles e, eventualmente, as linhas constitutivas de algo que vários séculos mais tarde irá ser designado por ciência estética.

Tenha‑se ainda em conta um outro aspecto. Aristóteles encarou a poesia sobretudo como technê, isto é, como uso prático do intelecto enquanto considerado no objecto produzido. Naturalmente, há condições neste aspecto do pensamento aristotélico para que ele seja apropriado pela orientação objectiva, na medida em que esta reconhece nesse pensa­mento o seu próprio princípio da autonomia da obra artística, isto é, aquele princípio tão caro às posturas críticas de uma modernidade anti‑expressiva ou pós‑romântica. Por isso encontramos três importantes investigadores a valorizarem Aristóteles exactamente pela distinção que ele teria operado entre estética e moral:

«Aristóteles foi o primeiro que tentou separar a teoria da estética da teoria da moral. Ele assegura coerentemente que o objectivo da poesia é um prazer requintado [.. ] e nunca permite que a finalidade moral do poeta ou que os efeitos morais da sua arte ocupem o lugar do objectivo artístico.» (S.H. Butcher, 1911, 1945: 238.)

«Quando Aristóteles se volta para a arte da poesia [poietike], ele está determinado a assinalar fronteiras e a estudar a natureza da arte independentemente das suas ligações morais e políticas.» (Monroe C. Beardsley, 1966: 54-55).

«Significativo é o seu [de Aristóteles] desafio da visão ética da poesia, a sua dis­cordante afirmação de que a função do poeta é sobretudo a de dar prazer. De tal maneira, que a partir dessa altura não havia desculpa [...] para confundir padrões esté­ticos com padrões morais para julgar a arte.» (A.J. W. Atkins, 1934, 1961: 1, 117).

No entanto, esta legitimação da orientação objectiva, através da qual estes autores invocam o prestígio de Aristóteles por uma compartimentação táctica do seu pensamento acerca da literatura, pode ser contrariada em três horizontes. Por um lado, pelo horizonte da própria perspectiva aristotélica que sublinha antes de mais ou tão‑só a mimese como a capacidade que a arte tem de se tornar uma imitação bem sucedida da estrutura da acção humana, de modo a alcançar o bem humano revelador do objectivo último não só da poesia mas de todas as esferas da acção ou da vida: «Qualquer arte e qualquer processo de inquirição, e do mesmo modo qualquer acção e qualquer busca, procuram alcançar um qualquer bem humano; e por esta razão o bem foi justamente declarado ser aquilo para que tendem todas as coisas. (Aristóteles, Ética a Nicómaco: 1094a).

Por outro lado, a contestação pode ser articulada a partir de dois outros horizontes, isto é, um que inscreve uma perspectiva que permite encarar aquela legitimação como decor­rendo de um anacronismo crítico pós‑kantiano, e outro que inscreve uma perspectiva que encara o pensamento literário aristotélico nos termos próprios da sua articulação com a teoria moral. Isaiah Smithson possibilita‑nos um exemplo da primeira perspectiva e G. M. A. Grube da segunda: «Há uma desculpa para confundir padrões estéticos com padrões morais depois de a Poética ter sido escrita—e a desculpa não é a relativa ausência do texto na Europa antes do Renascimento. A desculpa é que, ao contrário de Kant e de pensa­dores posteriores que discriminam aberta e claramente os julgamentos estéticos dos morais, Aristóteles não concebe uma tal separação. Em vez disso, e de um modo con­sistente com a visão que é afirmada na Ética a Nicómaco [...], Aristóteles investiga na Poética o bem particular que a tragédia tenta alcançar. (I. Smithson, 1983: 17). «Aristóteles tinha uma consciência clara de que uma arte deve ser julgada nas suas próprias premissas (‘adequação para um poeta não é a mesma que para um político’), mas que estas premissas fossem, no caso da tragédia, puramente estéticas, e portanto amorais, era algo que pura e simplesmente não lhe poderia ter ocorrido.” (G. M. A. Grube, 1958: Prefácio, XXII).

Consideremos ainda, e em reforço do que tenho vindo a defender, que os dados da reflexão aristotélica articulam a tragédia por uma finalidade catártica, a qual, como foi interpretada pelo século XVII, implica uma inequívoca dimensão moral (os valores implí­citos no exemplo) e ética (o apaziguamento das paixões). Este entendimento da finali­dade catártica não é, aliás, incompatível com a outra interpretação também dada para o termo catharsis, designadamente a que explica que no seu sentido fisiológico e médico a catarse seria uma medicação ou um remédio contra o exagero e o excesso. Mas independentemente da interpretação dada para o conceito de catarse, o que interessa sublinhar é que a importância atribuída à finalidade catártica sugere que o esforço de compreensão da tragédia desenvolvido por Aristóteles se orienta fundamental­mente num sentido normativo, o qual é corroborado por inúmeras expressões do tipo «A fábula não deve...», tornando, de facto, a orientação aristotélica marcadamente prescri­tiva. A verosimilhança, a unidade de acção, a unidade de tempo e lugar, a categorização das perso­nagens, etc., se decorrem de um paradigma de racionalidade interessado sobretudo em explicações e leis, assentam fundamentalmente em critérios avaliativos que fazem com que o texto aristotélico deva ser encarado menos pelo paradigma teórico e mais pelo paradigma estético—ou até, e mais convictamente, pelo paradigma da filosofia da literatura, se fizermos fé no entendimento que um autor como Lucien Goldmann propõe para a filosofia: «Por filosofia designamos todo o conjunto explicitamente ou implicitamente coe­rente de julgamentos que constatam e de julgamentos de valor [valorisants] sobre aquilo que é e sobre aquilo que deve ser e eventualmente sobre a natureza e o valor das criações imaginárias» (L. Goldmann, 1970: 130).

A partir do que acaba de ser exposto, pode‑se concluir que qualquer tentativa de encontrar uma tradição para a teoria como teoria acaba por se revelar como projecção dos interesses do presente numa tradição que, de facto, outra coisa não é senão uma tradição construída; ou como legitimação de programas próprios através da apropriação de alguns dos dados da herança cultural. Qualquer tentativa de construir uma tradição para a teoria como teoria acaba invariavel­mente por revelar a tradição como continuidade ilusória, exibindo simultaneamente nesse processo a realidade tantas vezes escamoteada de que a teoria se configura como uma forma de prática ou de interpretação, porquanto envolvimento intelectual situado num espaço muito próprio de desejos e com efeitos locais bem determinados. A teoria literária não é um espaço epistemológico neutro.

Isto não quer dizer que a teoria literária não tenha uma história institucional autónoma, e muito menos que ela não decorra de um vastíssimo trabalho intelectual que remonta à Antiguidade. Mas na história que decorre desse trabalho, e em nome de um conhecimento tanto quanto possível claro do campo em que estamos a trabalhar, não se pode confundir pensamento literário e/ou história da estética com teoria da literatura. Também neste domínio Jorge de Sena intuiu brilhantemente o cerne da questão. Vale a pena fazer fluir o discurso da sua inteligência: «A libertação da literatura, como da crítica, dos liames de outras disciplinas levou à criacão da ‘teoria da literatura’. Mas esta não é, ao contrário do que às vezes se supõe, uma teoria da crítica, ou uma história das doutrinas e dos métodos críticos. Sempre houve ‘teoria’ da literatura, e épocas existiram que se distinguiram pela fúria das discussões teóricas, como sucedeu no Renascimento e no Maneirismo sobretudo italianos. Mas essas discussões não se interrogavam sobre o que a literatura era, mas sobre o que ela deveria ser. Ainda quando a discussão se centrava na legitimidade de certa orientação estética, não menos a legitimidade era discutida em termos de norma. É óbvio que assim teria de ser: onde uma legitimidade é atacada ou defen­dida tê‑lo‑á de ser no confronto com outra que é julgada a única ou a preferível. A teoria da literatura corresponde porém a uma fase diversa, em que não é posta em causa a legitimidade de coisa alguma. Tudo o que foi literatura é o objecto próprio da pesquisa do que literatura seja (Jorge de Sena, 1977: 157-8).

Harold Bloom, por exemplo, parece confundir deliberadamente estas várias coisas quando sobranceiramente nos diz que «qualquer estudante contemporâneo da literatura, e da interpretação literária, sabe que os Gregos inventaram a teoria e a crítica literárias» (H. Bloom, 1985: I,1). Qual seria a reacção de um cientista à afirmação de que os Gregos inventaram a psiquiatria só porque, na linha da medicina de Galeno e Hipócrates, estudaram a saúde mental na sua relação com os humores existentes no conteúdo líquido do corpo?

2. Um arquitexto virtual

Tal como afirmei atrás, é inegável que a teoria literária contemporânea decorre de um vastíssimo trabalho intelectual que remonta à Antiguidade. No entanto, acredito que a ‘história’ institucional da teoria literária deve ser identificada a partir de um momento muito próprio da narrativa cultural do Ocidente, designadamente no momento em que se gerou um diálogo acidentado entre a crítica literária e uma nova disposição intelectual que não só colocou a plataforma teórica no centro das atenções dos estudos literários, mas também orientou o valor atribuído a essa plataforma num sentido conducente ao próprio processo de individuação da teoria literária. Esse momento é sinalizado pelos trabalhos dos vários autores envolvidos no chamado äFormalismo Russo.

A bibliografia crítica acerca desta postura intelectual nos estudos literários, partindo invariavelmente do trabalho pioneiro de Victor Erlich (vd. Erlich, 1965), é de tal maneira abundante nos nossos dias que qualquer reflexão detalhada sobre o Formalismo Russo corre o risco de se tornar repetição insípida. No entanto, acredito, no quadro em que tenho vindo a desenvolver a minha argumentação, que vale a pena manter e aprofundar a convicção de que é no sistema de generalidade conceptual em que os formalistas russos inscreveram a compreensão da literatura que devemos identificar o arquitexto virtual da teoria literária. Um arquitexto que, erguendo‑se pela consciência da necessidade de uma actividade reguladora dos estudos literários, instituiu o programa dife­rencial de um novo campo disciplinar (o da teoria literária) como sendo claramente dife­renciado não só de outros campos do saber, mas também do repertório de interesses que constituía o campo de estudos conhecido na altura por Litteraturwissenschaft—o qual, possuindo embora uma série unificável de tendências, não apresentava um modelo unificado de pesquisa. Ao fazê‑lo, os formalistas russos forneceram a chave que faltava ao pensamento literário para ultrapassar a sua dependência intrínseca da filosofia e da estética, e fechar assim o círculo aberto pela brilhante experiência teórica dos românti­cos—os quais tiveram o supremo mérito de inaugurar o absoluto literário pela projec­cão filosófica da literatura enquanto produtora da sua própria teoria (cf. Lacoue‑Labarthe & J L Nancy, 1978), embora sem instituírem a teoria literária pela consciência da necessidade da sua própria individuação, como vieram a fazer os formalistas russos.

É claro que os traços distintivos só por si não chegam para delimitar um campo dis­ciplinar. Se assim fosse, dificilmente se poderiam conceber os esforços interdisciplinares da teoria literária. É por isso que se revela sobremaneira importante a especificação que os formalistas russos (e, diga‑se em abono da verdade, em larga medida também os estrutu­ralistas checos) fizeram dos princípios que orientam a actividade teórica dos estudos lite­rários. Seguindo a perspectiva de David Gorman acerca das circunscrições de uma disci­plina (D. Gorman, 1986: 33), deve‑se afirmar que o conteúdo desses princípios inclui, em primeiro lugar, as categorizações que identificam o objecto ou a finalidade da disciplina—no caso dos formalistas, a sua identificação da äliterariedade e de todo o aparelho con­ceptual que dela resulta e que para ela converge. Em segundo lugar, inclui os critérios que determinam o sucesso ou o fracasso do próprio trabalho no interior da disciplina—embora podendo ser só vagamente definidos, no caso dos formalistas estes critérios encon­traram mesmo assim um eco importante nos vários investigadores envolvidos, como está patente, por exemplo, na insistência jakobsoniana na «análise científica objectiva da arte da linguagem» e nos resultados por ela proporcionados, bem como nas implicações (de inclu­são e exclusão de vários tipos de estudo) que decorrem da analogia que Jakobson esta­beleceu entre estudos literários/crítica literária e linguística pura/linguística aplicada. É certo que a especificacão daqueles princípios revela a dependência dos formalistas do modelo linguístico—bem como da äfalácia científica que invariavelmente a acompanha—e, consequentemente, aponta para a caducidade potencial da sua própria plausibilidade. Porém, o que importa considerar é menos essa dependência e mais a dimensão transdisci­plinar por que esses princípios se instituem em cânones gerais de racionalidade. É por esses cânones que se anuncia a particularidade de um projecto disciplinar que, no processo de evolução intelectual da cultura do século XX, veio a concretizar‑se através daquilo que se convencionou chamar Teoria da Literatura. É por esses cânones que podemos compreen­der as mutações históricas dos limites disciplinares da teoria literária ou as configurações pos­síveis que decorrem dos numerosos e acidentados caminhos por ela percorridos no nosso tempo. É por esses cânones, ainda, que se justifica a coalescência da teoria literária face à diversidade de teorias particulares que resultam da simultânea diversidade e especificidade, quer da literatura quer da experiência crítica da literatura. É por esses cânones, finalmente, que se prova que a teoria da literatura não nasceu, de facto, contra a crítica, mas como uma necessidade da crítica.

3. A institucionalização da disciplina

O fenómeno de popularidade da teoria literária tem, pelo menos de há vinte anos para cá, um forte sotaque norte-americano. Contudo, nem sempre foi assim. Na Europa, e muito particularmente na França dos anos Sessenta, a teoria literária, enquanto “teoria do texto” (recorrendo à expressão de R. Barthes) brotou naturalmente do impacte que a línguística teve no estudo das práticas discursivas de uma sociedade. Uns chamaram-lhe äestruturalismo, outros mudança linguística ou “linguistic turn”. A descoberta estruturalista da materialidade linguística do texto, da autonomia propriamente literária das multivalências da linguagem ou da äpolissemia textual, abriu naturalmente o caminho à redescoberta do protagonismo do leitor e à dissolução da importância do autor como instância explicativa da intenção semântica do texto. O chamado äpós-estruturalismo foi ou é, no essencial, o prolongamento natural desta atmosfera, sobretudo se a encararmos nos termos da fruição ou da äjuissance barthesiana, bem como da äindecidibilidade derridiana. Em suma, estavam criadas as condições para que as configurações textuais agenciadoras da leitura, da interpretação e da recepção se constituissem em núcleo aglutinador de uma prática intelectual que a universidade gradualmente absorveu e institucionalizou sob a designação de teoria literária.

Embora por vias diferentes, do lado americano chegou-se aos mesmo resultados a que se tinha chegado na Europa, ou pelo menos em França. Quando nos anos 40/50 os chamados New Critics (äNew Criticism) insistem na denegação da äfalácia intencional e da äfalácia genética, eles estão, de facto, a orientar também a atitude crítica fundamentalmente para fora do autor e para dentro do texto ou para aquilo a que chamaram äclose reading. O que se procurava era, no essencial, um conjunto de princípios estruturais e transculturais que pudessem dar conta dos traços específicos de qualquer obra literária. Esta concentração nas interrelações formais internas de uma obra literária, enquanto obra literária, criou condições para o aparecimento de uma consciência teórica. Dito de outra maneira, a insistência numa estrutura teórica de princípios universais de leitura que podiam ser aplicados a vários textos conduziu inevitavelmente a uma teoria geral da leitura desses mesmos textos. Estamos, assim, perante um impulso de engendramento de uma teoria dos textos literários que pretende sobretudo dar conta da sua diferença propriamente literária ou da sua äliterariedade.

Importa ressalvar neste momento que do lado americano este começo da teoria literária não teve necessariamente as mesmas consequências que do lado francês ou europeu. Enquanto na Europa, graças à dinâmica estruturalista, a teoria começava a ser estudada por si mesma, nos EUA a dinâmica do New Criticism implicava a teoria na crítica literária, isto é, a teoria existia para estar ao serviço da crítica literária, ao serviço de uma melhor leitura e interpretação dos textos literários. É só no final dos anos Sessenta, e exactamente através da influência francesa do estruturalismo e do pós-estruturalismo, que os EUA revelam um movimento para estabelecer a teoria literária como disciplina independente (Veja-se sobretudo a obra de Murray Krieger intitulada The Institution of Theory, 1994).

O exemplo português de institucionalização da disciplina é extraordinariamente curioso. A reforma da 1957 criou a disciplina de Teoria da Literatura como displina do 1º ano dos cursos de Letras, dando-lhe, portanto, um perfil introdutório, com um espírito semelhante ao que, a partir de 1974, se irá chamar Introdução aos Estudos Literários. Independentemente do seu perfil introdutório ou culminante (como acontecerá na reforma de 1969, na qual a Teoria da Literatura passou para o último ano), este reconhecimento académico da disciplina, em plena década de Cinquenta, não deixa de ser surprendente. Por duas razões. Em primeiro lugar, porque o carácter problematizador da disciplina dificilmente se articulava com o autoritarismo ideológico e político do regime salazarista. Em segundo lugar, a surpresa é ainda maior quando se pensa que a disciplina de Teoria da Literatura, enquanto disciplina autónoma dos estudos literários, tinha na altura uma tradição muito débil, conforme se depreende dos contextos internacionais que apresentei antes. Não pretendo aqui fazer conjecturas acerca das contradições que podem estar subjacentes a esta situação. Neste ensaio interessa-me unicamente referir que, no caso português, a noção de teoria da literatura faz há muito tempo parte do léxico intelectual e da formação académica de várias gerações de críticos e estudiosos da literatura. Aliás, creio mesmo que é essa situação que está na origem do aparecimento de obras como Teoria da Literatura, de Vítor Manuel de Aguiar e Silva, que constitui uma exaus­tiva exposição científico‑didáctica dos múltiplos dizeres da teoria literária, bem como Os Universos da Crítica, de Eduardo Prado Coelho, que constitui um pormenorizado diálogo com os diversos olhares do pensamento literário contemporâneo.

4. O fim da teoria literária?

Neste momento parece haver um movimento mais ou menos generalizado contra a teoria literária, embora ele adquira uma relevância muito especial nos EUA, particularmente nos EUA, mas também na Grã-Bretanha. Não atribuindo aqui qualquer importância aos que, em qualquer parte do mundo, são contra a teoria por ignorância, preguiça ou indigência intelectual, aquele movimento pode ser estrategicamente divido em três grandes blocos.

Por um lado, temos aquela espécie de rivalidade mimética com a teoria literária por que certas proclamações antiteóricas (se) revelam (n)a sua própria disposição teórica. Alguns dos seus exemplos mais interessantes podem ser encontrados nos ataques contra a teoria desferidos conjuntamente por Steven Knapp e Walter Benn Michaels em nome da defesa da «intenção do autor», bem como no conturbado anúncio do «fim da teoria literária» por parte de Stein Haugom Olsen com o consequente (res)surgimento redentor da «estética literária».

Por outro lado, temos a versão híbrida, extremamente contraditória, que é representada pelas várias formas do äMaterialismo Cultural e do äNovo Historicismo, ambos de inspiração marxista ou para-marxista. No essencial, o que é proposto é uma série de recuperações de um entendimento historicista do discurso literário no quadro mais geral dos múltiplos discursos de uma cultura ou das múltiplas formações discursivas que nela operam. Michel Foucault parece ser o pai espiritual destes autores para quem a literatura faz sentido sobretudo pela “energia social” (vd. Greenblatt, 1988) que atravessa os textos, e através da qual podem ser descobertas as correspondências entre as convenções literárias inscritas no texto e as forças políticas hegemónicas da sociedade. É claro que neste quadro de regulação ideológica da literatura a teoria literária, enquanto implicitação da primazia artística dos textos literários, faz pouco sentido.

Finalmente, encontramos o estranho movimento dos “arrependidos” da teoria, isto é, daqueles que, como Murray Krieger, Harold Bloom e Stanley Fish, mais fizeram por a institucionalizar, mas que se mostram perplexos (Krieger) ou horrorizados (Bloom) ou morbidamente entusiasmados (Fish) com as suas manifestações actuais. É com estes que vale a pena discutir o problema.

A perplexidade de Murray Kriger concentra-se sobretudo na constatação daquilo que pode ser considerado um certo anti-humanismo militante por parte da teoria actual. Tal facto torna aquele autor nostálgico dos tempos do New Criticism em que a “imaginação liberal” da pesquisa teórica se mostrava “sensível à voz do outro” (1994: 23).

É em nome daquilo a que chama “grande literatura”, bem como do prazer da leitura que o nosso tempo parece estar a matar com a ajuda da teoria, que Harold Bloom reúne as manifestações actuais da teoria literária na noção de Escola do Ressentimento (School of Resentment), e na qual inclui Feministas, Afrocentristas, Marxistas, Novos Historicistas e Desconstrucionistas. Uma estranha mistura que faz sentido sobretudo na visão apocalíptica de Harold Bloom acerca daquilo a que chama os “abridores do cânone” ocidental, e da intransigente defesa que faz desse mesmo cânone, muito particularmente do seu núcleo constitutivo, William Shakespeare (veja-se H. Bloom, 1994, 1997). Para Harold Bloom, todos estas orientações dos estudos literários—“em fuga do estético”, conforme ele afirma—estão a matar os estudos literários exactamente no seio da universidade, isto é, no seio da instituição que mais deveria fazer para os salvaguardar: “Não acredito que os estudos literários tenham futuro enquanto tal, mas isto não significa que a crítica literária vá morrer. Enquanto ramo da literatura, a crítica sobreviverá, mas provavelmente não nas nossas instituições de ensino. O estudo da literatura ocidental também continuará, mas na escala muito mais modesta dos nossos actuais departamentos de Clássicas. (...) Não vale a pena lamentar esta evolução, pois hoje em dia só uma mão cheia de estudantes entra na Universidade de Yale com uma autêntica paixão pela leitura. Não se pode ensinar alguém a amar a grande poesia quando esse alguém chega até nós sem esse amor. Como é que se pode ensinar a solidão? A verdadeira leitura é uma actividade solitária e não ensina ninguém a ser um cidadão melhor. (...) Embora sendo uma questão intrincada, não está para além de qualquer conjectura a exacta razão pela qual os estudantes de literatura se transformaram em analistas políticos amadores, sociólogos ignorantes, antropólogos incompetentes, filósofos medíocres e historiadores culturais sobredeterminados. É que todos eles se ressentem da literatura, ou se envergonham dela, ou simplesmente não estão muito dispostos a lê-la. (...) A líbido é um mito, e as “energias sociais” também o são. Shakespeare, escandalosamente condescendente, foi uma pessoa que viveu e teve a ideia de escrever Hamlet e Rei Lear. Esse escândalo é inaceitável para aquilo que hoje em dia passa por ser teoria literária. (Bloom, 1997: 519-521).

Quanto a Stanley Fish, este invoca o que julgo ser a saturação de (e com) o próprio camplo disciplinar da teoria literária. A metáfora que Fish utiliza para caracterizar o trabalho teórico é a do Yo-Yo (um carreto no qual está enrolado um cordel, e que as crianças lançam e tornam a enrolar). Vale a pena uma fazer uma outra longa citação: “A teoria só chegará ao fim quando tiver esticado o seu cordel, percorrido o seu caminho, quando as urgências e os receios de que é expressão se desvanecerem ou se exprimirem através de qualquer outra coisa. Isto já está a acontecer nos estudos literários (...). O esbatimento da teoria é sinalizado não pelo silêncio mas por mais e mais conversa, mais revistas, mais congressos e mais entradas na competição pelo direito a resumir a história da teoria. Um tempo virá em que essa é uma competição que ninguém deseja vencer; um tempo em que a divulgação de mais uma outra amostragem do método crítico é recebido não como uma promessa mas como uma ameaça; um tempo em que o anúncio de mais um outro Colóquio acerca da função da teoria nos nossos dias provocará apenas um suspiro de lamentação. Esse tempo pode muito bem ter já chegado: o dia da teoria está a chegar ao fim; a hora é tardia; e a única coisa que resta ao téorico é dizer isto mesmo (...)” (S. Fish, 1989: 340-341).

Todos estes argumentos fazem sentido; todos eles decorrem de diagnósticos acertados da cena intelectual contemporânea. Não vale a pena escamotear a sua legitimidade, e muito menos contrariá-los através de atitudes protectoras (ou pseudo-protectoras) da teoria que, no fundo, nada mais seriam que exercícios de um paternalismo anacrónico. O que importa é aceitar a discussão nos termos em que é colocada por aqueles três autores, procurando respostas para as suas posições problemáticas, bem como alternativas ou saídas (por mais provisórias que elas possam ser) para a própria crise interna da teoria que aquelas posições evidenciam.

Comecemos pela nostálgica posição de Murray Krieger. Será possível um regresso ao velho humanismo que pugnava pelo carácter contra-ideológico da literatura e, por extensão, da crítica literária, com a teoria a funcionar como a sua rede protectora? Julgo que não. Em primeiro lugar, porque vivemos hoje numa cultura de resistência ao privilégio do literário. Em segundo lugar, porque é hoje dificilmente defensável a ideia fundamentalista de uma partilha de valores humanos universais. A primeira razão abre-nos (ou deve abrir-nos) para o estudo de formas culturais que, ao se cruzarem com a literatura no imaginário cultural, obrigam a uma questionação do próprio estatuto institucional do literário. A segunda razão coloca-nos perante necessidades novas, designadamente a de problematizar a relação crítica com um texto enquanto relação fundada num conjunto de escolhas morais por parte do crítico num quadro pluralista mais vasto de envolvimentos éticos. A reflexão acerca de tudo isto cabe (ainda e sempre) à teoria literária. Mas cabe num contexto que não pode ser subsumido numa visão tradicional que encare as diferentes formas culturais (incluindo a literatura) como separadas ou mesmo independentes umas das outras, nem como estando sujeitas a uma hierarquia de valor cognitivo—que era o que acontecia com os New Critics.

Passemos agora à posição de Harold Bloom. Será que o teórico da literatura deve renegar a teoria para voltar à pureza imaculada da experiência estética, como Bloom pretende? Julgo que não, embora aqui eu tenha sentimentos contraditórios quanto a esta negativa. Cada vez mais me convenço que a identificação do belo decorre sobretudo de uma intuição profunda partilhada pelo homem, situando-se, por isso, mais ao nível do arquetípico e universal do que do contingente ou acidental. No entanto, não posso ignorar as condições da diversidade cognitiva por que se opera aquela partilha, e muito particularmente a sobredeterminação cultural e histórica das hierarquias do valor estético que invariavelmente a acompanha. Quero dizer com isto que apesar da sua eventual universalidade imediata ou intuitiva, a experiência estética é uma experiência qualitativa no sentido em que está dependente de graus qualitativos de conhecimento teórico da própria experiência estética. Não se cai necessariamente no relativismo vulgar se insistirmos na ideia de que nenhuma leitura crítica é inocente, pois nela estão sempre implícitos os preconceitos (ou as crenças e os valores) do próprio crítico. A teoria que estuda esses graus e os contextos que os definem, bem como esses preconceitos e os discursos por que eles se manifestam não pode, por isso, ser vista como inimiga do estético, mas antes como o seu duplo necessário. Hoje, tal como ontem.

Consideremos, finalmente, a posição de Stanley Fish. Será que o teórico se deve limitar a escrever a crónica da morte anunciada da teoria, como pretende Fish, cruzando os braços perante a inevitabilidade dessa morte? Julgo que não. A razão para tal parece-me simples. O regime intelectual da produção teórica não é de tipo autoritário mas, antes, pluralista, na medida em que corresponde ou surge em consonância com a heterogeneidade das narrativas que compõem a cultura. No que à literatura diz respeito, essa heterogeneidade resulta dos próprios movimentos que cada época executa em direcção a épocas anteriores, transformando os dados do passado, tornando-os presente, inaugurando o futuro. Também as coisas literárias mudam de acordo com as circunstâncias, desafiando posições intelectuais, levando os teóricos a jogar o jogo da arbitrariedade das circunstâncias históricas e, ao mesmo tempo, a ser por elas jogados. Isto tem como consequência que a teoria da literatura está “condenada” a subsistir não só para narrar a história da sua busca de diferenciação intelectual, mas também para mostrar a diferença da sua narrativa acerca de um objecto que constantemente se transforma e se redistribui pelos vários planos da cultura. Neste sentido, pode-se afirmar que a teoria é uma actividade sem destino, embora com uma orientação bem marcada pelas energias heterogéneas da literatura.

Sintetizando o comentário que acabo de fazer das várias posições anti-teóricas, julgo que o teórico da literatura deve aceitar as evidências da crise interna da teoria não como uma fatalidade mortal, mas como um desafio à capacidade meta-teórica da própria teoria. Por outro lado, é também essa crise interna que nos deve impulsionar com mais vigor para uma pesquisa no interior da literatura de modo a podermos encontrar novas circunstâncias que apontem para novos problemas. É exactamente isso que tentarei exemplificar a seguir. Passemos, então, a um novo estádio da exposição.

5. Os novos horizontes da teoria literária

Na medida em que acredito que a evolução do pensamento literário nunca se fez independentemente da evolução da literatura, qualquer inquirição teórica implica um entendimento específico do que a literatura foi, é e sobretudo poderá vir a ser. O meu entendimento é o seguinte.

1º) Independentemente das questões de valor estético, julgo que é à presença da ficcionalidade (ou à representação/interpretação ficcional da realidade) que se deve a identificação milenar da literatura. Neste sentido, sem ficção nunca houve, não há nem haverá literatura. A partilha cultural deste denominador comum, quase intuitiva na sua universalidade, prova-o amplamente.

2º) Apesar daquela universalidade, aquilo que é ou não é autêntica literatura esteve desde sempre dependente de códigos epocais dominantes. Embora mutáveis, esses códigos marcaram e marcam fortemente a evolução literária ou o diálogo intra-literário entre diferentes gerações de escritores e leitores. Isto quer dizer que os dispositivos expressivos da literatura se modificam e se transformam em função das modificações e das transformações da sociedade humana.

3º) Aquilo que sinaliza mais intensamente tanto a ideia genérica que hoje temos do nosso presente como as nossas congeminações acerca do futuro podem ser epitomizadas no extraordinário horizonte de possibilidades abertas à humanidade pela informática e, no âmbito daquilo que aqui interessa, pela comunicação multimédia e interactiva.

Estas três componentes do meu entendimento da literatura, do processo literário e da tendência genérica da cultura contemporânea, conduzem-me à seguinte reflexão. A comunicação multimédia e interactiva, que tão bem caracteriza o nosso final de milénio, tem vindo a introduzir alterações profundas no sistema de recolha, organização e experiência da informação. De tal maneira que são múltiplos os sinais que nos anunciam uma nova era onde o livro, tal como o conhecemos, deixará de existir. São múltiplos os sinais que nos dizem que o “texto” electrónico irá implacavelmente «redefinir a escrita, a leitura e também a profissão literária» (Richard H. Lanham, 1989: 265). São múltiplos os sinais que nos asseguram que a literatura só terá lugar num espaço electrónico interactivo simultaneamente centrado em e descentrado por inúmeros desdobramentos de leitura.

As fundações culturais da literatura do futuro já foram avistadas na serenidade teórica da äpolissemia, e a sua arquitectura epistemológica continua a ser traçada na turbulência da äindeterminação textual. O edifício artístico anuncia-se agora na alegre festa interactiva da palavra que o leitor pode substituir, das personagens cujo papel o leitor pode trocar e de uma história sempre inacabada ou, melhor, acabada segundo a vontade, os interesses, as motivações de cada leitor. O chamado ähipertexto já se desenha no horizonte informático e com ele (através dele) as inúmeras combinações (re)criativas que o leitor é chamado a executar. Conforme já foi bem estudado por George P. Landwow (Cf. 1992, em especial pp. 2-34), é mesmo no sistema intertextual protagonizado pelo hipertexto que muitos dos mais importantes desideratos estruturalistas e pós-estruturalistas encontram finalmente a sua expressão mais fascinante.

Se acreditarmos nesta redefinição electrónica da comunicação, a noção de texto original perde-se na mutação da literatura que se anuncia. Os exemplos já disponíveis de ficção interactiva (veja-se R. Ziegfeld, 1989) provam que o “texto” não é mais um lugar autónomo que propicia uma fruição (leitura) condicionada por unidades fixas, mas sim uma totalidade onde leitor e autor, através de possibilidades abertas por «software» próprio, encetam diálogos criativos completamente novos. Neste novo mundo da palavra, o “texto” existe como entidade localizada dinamicamente para e a partir do leitor num jogo de hipóteses em permanente transformação.

A teoria literária não pode, de modo nenhum, estar fora desta fascinante mutação de paradigma que nos é dado viver. Ao contrário, é ela que melhor pode estudar e compreender essa mutação, tanto nas suas diferenças específicas como nas suas relações inevitáveis com as pulsões mais intemporais que levaram e levam o homem a construir e a querer fruir a palavra ficcional, os mundos possíveis que a ficção exibe ou a matéria negra agenciadora da heteronomia dos textos imaginativos (veja-se M. F. Martins, 1995). Se acreditarmos, como eu acredito, na redefinição da comunicação literária que será introduzida pela literatura interactiva, então a teoria literária não precisa de assumir um papel protector ou paternalista da literatura por oposição à äteoria crítica tão do desagrado de autores como Harold Bloom. O apelo do “outro” que interage no texto literário do futuro será, ainda e sempre, um apelo à teoria dessa mesma interacção, bem como à teoria das novas relações críticas que ela implica.

Em suma, é aqui, segundo creio, que mais um novo caminho se abre à teoria literária, confirmando-a também, aliás, como processo interrogativo do pensamento crítico. É por aqui que se descortina um eventual novo fim para a teoria que será qualquer dia anunciado num qualquer colóquio, conferência ou publicação, isto é, um novo começo de um novo estudo de um novo problema que a literatura (com este ou com outro nome) nos irá de novo colocar. Por isso, e para concluir, a teoria literária não chegou ao fim, mas vai a caminho, continuamente a caminho de um fim que não é nem nunca será verdadeiramente um fim. Até porque o fim, de facto, é sempre um início.

CRÍTICA LITERÁRIA; HERMENÊUTICA; LITERATURA; POÉTICA; RETÓRICA; TEXTUALIDADE

Bib.: Aristóteles: Ética a Nicómaco, Poética, Retórica; A.J.Atkins: Literary Criticism in Antiquity. A Sketch of its Development (1934, 1952); Boris Eixenbaum: “The Theory of the Formal Method” (1926), in Matejka & Pomorska, (1978); David Gorman: «Self-Consuming Disciplines? A Proposal Considered», in Explorations in Knowledge, III, 2: 33-42, (1986); Eduardo Prado Coelho: Os Universos da Crítica (1982); Edward Stankiewicz: «Poetics and Verbal Art» (1977); «Prague School Morphophonemics» (1978); G.M.A. Grube: Aristotle on Poetry and Style (1958); George P. Landow: Hypertext. The Convergence of Contemporary Critical Theory and Technology (1992); Harold Bloom (org.): The Art of the Critic: Literary Theory and Criticism from the Greeks to the Present, Vol. I (1985); O Cânone Literário Ocidental (1996); Isaiah Smithson: «The Moral View of Aristotle’s Poetics», in The Journal of the History of Ideas, Vol. LXIV, nº1 (1983); John Jones: On Aristotle and Greek Tragedy (1980); Jorge de Sena: Dialécticas Teóricas da Literatura (1977); Leonard Orr: Research in Critical Theory Since 1965: A Classified Bibliography (1989); Lucien Goldmann: Marxisme et Sciences Humaines (1970); M. H. Abrams: The Mirror and the Lamp: Romantic Theory and the Critical Tra­dition (1953); Manuel Frias Martins: Matéria Negra. Uma Teoria da Literatura e da Crítica Literária (1995); Murray Krieger: The Institution of Theory (1994); Paul de Man: A Resistância à Teoria(1986, 1989); Philip Lacoue-Labarth & Jean Luc Nancy (orgs.): L’absolue littéraire. Théorie de la littérature du romantisme allemand (1978); Raman Selden: A Reader’s Guide to Contemporary Literary Theory (1989); René Wellek & Austin Warren: Teoria da Literatura (1947, 1971); Richard H. Lanham: «The Electronic Word: Literary Study and the Digital Revolution», in New Literary History, Vol. XX, 2 (1989); Robert C. Davies: «The Case for a Post‑Structuralist Mimesis: John Barth and Imitation», in American Journal of Semiotics, Vol. III, nº 3 (1985); Roland Barthes: O Grau Zero da Escrita (1953, 1977); O Rumor da Língua (1984, 1987); Samuel H. Butcher: Aristotle’s Theory of Poetry and Fine Art (1902, 1979); Stanley Fish: Doing What Comes Naturally. Change, Rhetoric, and the Practice of Theory in Literary and Legal Studies (1989); Stein Haugom Olsen: The End of Literary Theory (1985); Stephen Greenblatt: Renaissance Self-Fashioning. From More to Shakespeare (1980); Stephen Knapp & Walter Benn Michaels: «Against Theory» (1985), in W.J.T.Mitchell (org.); «Against Theory 2: Hermeneutics and Deconstruction», in Critical Inquiry, Vol. XIV, nº1, (1987); Victor Erlich: Russian Formalism. History, Doctrine, 2ª ed. rev.(1965); Richard Ziegfeld: «Interactive Fiction: A New Literary Genre?», in New Literary History, Vol. XX, nº2 (1989); Vítor Manuel de Aguiar e Silva: Teoria da Literatura (1982, 4ª edição).

Manuel Frias Martins

1 comentários:

Anônimo disse...

Thanks :)
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