Fenomenologia

O termo tem história recente, tomando sua acepção moderna a partir do filósofo Edmund Husserl. A fenomenologia é uma espécie de método que faz a mediação entre o sujeito e o objeto ou, dizendo de outro modo, entre o eu e a coisa. A partir da perspectiva que se deseja emprestar à realidade, ou à coisa, se podem distinguir três grandes linhas na fenomenologia: a transcendental, husserliana, a existencial, a partir de Jean-Paul Sartre e Maurice Merleau-Ponty, e a hermenêutica, cujos representantes maiores seriam Hans George Gadamer e Martin Heidegger.

No artigo “Da ficção”, publicado em 1966, Vilém Flusser explica a fenomenologia a partir de uma mesa simples, entendendo que ela pode ser percebida como uma ficção chamada “realidade dos sentidos”. Sob outra perspectiva, a mesa seria um campo eletromagnético e gravitacional praticamente vazio. Essa perspectiva é igualmente fictícia, ou seja, formula uma hipótese sobre o objeto a partir da chamada “realidade da ciência exata”. Do ponto de vista da Física é a mesa aparentemente sólida, mas de fato oca, e do ponto de vista dos sentidos é a mesa aparentemente oca, mas de fato sólida, nos termos da vivência imediata. Na verdade, não é produtivo perguntar qual destes pontos de vista é mais “verdadeiro”.

Se fosse possível eliminar os pontos de vista possíveis, deixando-os entre parênteses para contemplar a essência da mesa, restaria, para a fenomenologia, apenas o que vai chamar de “pura intencionalidade”. A rigor, a mesa seria a soma dos pontos de vista que sobre ela incidem, a soma das ficções que a modelam, ou quiçá o ponto de coincidência de ficções diferentes. Para Edmund Husserl, conhecido como o fundador da fenomenologia moderna, todos os fenômenos, da mesa mais simples ao evento mais complexo, são reais à medida em que compreendidos pela consciência. O conhecimento da própria consciência é o único conhecimento possível: a intencionalidade investida sobre os objetos os constitui. O algo de que a consciência tem consciência, o objeto do pensamento, Husserl chamaria noema, enquanto que a visada da consciência, o ato mesmo de pensar, ele chamaria noese, mas os dois termos são inseparáveis, se ninguém pensa sobre o nada. Se a consciência é sempre consciência de alguma coisa, então a consciência é intencionalidade e não há noese sem noema, cogito sem cogitatum, amo sem amatum e assim por diante: encontramo-nos entrelaçados com o mundo. A intencionalidade é um objetivo mas também uma doação de sentido; o isso – o mundo – integra a consciência.

Para não ficar entalado no solipsismo, Husserl recorre à intersubjetividade transcendental, supondo que as essências e as significações de um sujeito podem, por analogia, ter aspecto parecido com as dos demais. O outro é para si próprio um Eu; sua unidade não se encontra na minha percepção, mas nele próprio. O outro é experimentado por mim como estranho porque é ele mesmo, tanto quanto eu, fonte de sentido e de intencionalidade. Paul Ricœur dirá que há fenomenologia quando se trata como problema autônomo a maneira de aparecer das coisas, ou seja, quando se coloca entre parênteses a questão do ser. Uma fenomenologia é diluída quando não percebe, e portanto não tematiza, o ato de nascimento que faz surgir o aparecer. Em contrapartida, a fenomenologia será rigorosa se e somente se a dissociação dramática entre o ser e o aparecer for o objeto da sua reflexão, o que implica pôr em questão o ponto de vista, vale dizer: o filósofo.

Como Descartes, Husserl perseguia a certeza da filosofia, para tanto pretendendo que o seu pensamento não nascesse das divergências mas das coisas e dos problemas. A fenomenologia estabelece como postulado que o fenômeno seja lastrado de pensamento, isto é, que seja logos ao mesmo tempo que fenômeno. Um menino desenhando sem compasso poderá dizer que a forma oval que traçou em seu caderno é um círculo; sabemos que é apenas uma tentativa de círculo, mas sabemos também, junto com o menino, que é, sim, um círculo. A percepção do fenômeno se distingue da intuição da essência que se atribui ao fato materialmente percebido, o que permite identificar aquela forma como um círculo para além da sua expressão concreta. Platão já chamava eidos à intuição da essência condicionada à percepção do sensível: assim como há muitos homens e nenhum é O Homem, da mesma maneira há muitos círculos desenhados em muitos cadernos e nenhum será O Círculo, mas as essências deste e daquele estarão existindo, sim, como armadura inteligível do ser. O que Husserl não concorda é em situar tais essências num mundo inteligível de que o mundo sensível seria apenas derivado menor. As essências das coisas residem na consciência, sem com isso reduzirem-se a fenômenos psíquicos. Escapa desse beco psicológico recorrendo à noção de intencionalidade: os fenômenos não nos aparecem, são vividos.

É preciso mostrar que as leis lógicas são “puras”, isto é, construídas a priori. Da mesma maneira, os atos do pensamento, como a abstração, o juízo, a inferência, também não são atos empíricos, dos quais só se pode saber a posteriori, mas sim atos de natureza intencional. Para limpar o reconhecimento da intencionalidade das limitações do ponto de vista e escapar do escolho do relativismo, cumpre adotar a atitude de suspensão do mundo natural. Suspender o mundo natural equivale a colocar momentaneamente entre parênteses a crença, primeiro, de que o mundo natural existe, segundo, de que as proposições decorrentes dessa crença sejam verdadeiras. Essa suspensão se realiza através da epoché [conferir]. A epoché é o eixo da redução fenomenológica de Husserl, pela qual se suspende o juízo acerca do conteúdo doutrinal de toda filosofia. A epoché, porém, não é uma manifestação cética, uma vez que não nega a realidade do mundo natural. Husserl afirma que não há sujeito mais realista do que o fenomenólogo: tem certeza de que é um homem e tem certeza de que vive em um mundo real, do qual tem experiência efetiva – as evidências indubitáveis é que repõem a experiência como o maior dos enigmas.

O procedimento suspensivo da epoché implica a redução fenomenológica. Pela redução, deixamos de dirigir o nosso olhar para os objetos tomados em si mesmos em seu ser inacessível (a mesa, a árvore, a cidade) para dirigir a atenção para os atos da consciência que nos permitem chegar até eles (nossa visão da mesa, nossa lembrança da árvore, nossa imaginação da cidade). A redução fenomenológica é uma conversão do olhar que nos permite chegar ao objeto vivendo-o segundo seu sentido para nós, segundo o valor que lhe atribuímos e sobre o qual não negamos nossa responsabilidade. A redução, articulada à suspensão, é antes um processo de encaminhamento, um método, do que um conceito ou parte de um sistema teórico. É preciso mesmo que se rejeite a imposição de qualquer sistema; tamanha seria a riqueza dos fenômenos que se afiguraria falta de retidão e lealdade anteceder a humilde interrogação dos fenômenos de um sistema que a priori controlasse a interrogação para melhor submeter o objeto da atenção e, portanto, do controle. Nicolai Hartmann chegou a afirmar: “nada pode ser de proveito senão a tendência de abeirar-se dos fenômenos de tão perto quanto possível, para aprender a vê-los na sua multiplicidade e para só depois retornar de novo às questões gerais”.

Entretanto, contrariamente à dúvida cartesiana que a inspira, a redução husserliana não é provisória, negando o mundo para depois reconquistá-lo e à certeza; ela procura instalar-se num regime crítico de pensamento que é seu próprio fim, desejando um olhar despolarizado dos objetos que os libere da reificação ao percebê-los como unidade de sentido – como noema. O que se quer é converter todo fato bruto em essência vivida, abrindo campo para a epoché, ou seja, para aquela espécie de eclusa reflexiva que bloqueia a atitude ingênua e permite, ao olhar, olhar o próprio olhar.

De diferentes modos os nossos padrões mentais se modificaram depois do advento “Husserl”, porque a fenomenologia altera a própria concepção de conhecimento e, em conseqüência, a epistemologia moderna. O conhecimento, nos termos husserlianos, é uma relação concreta da qual o conhecedor e o que se conhece são, estes sim, extrapolações abstratas. O conhecimento é, ao contrário da impressão usual, um dos fatos concretos que fundam o mundo no qual vivemos, nossa Lebenswelt. O sujeito é uma hipótese, como já o demonstraram Nietzsche e Freud – ainda que hipótese indispensável. Da mesma forma, o objeto é outra hipótese – ainda que, novamente, hipótese indispensável. “Eu conheço esta mesa” denota uma intenção concreta e confirma que esse conhecimento, provavelmente compartilhado por muitos sujeitos, é ele mesmo concreto – no entanto, o “eu” e a “mesa” permanecem abstrações, ainda que necessárias.

Se sinto dor no estômago, apenas a dor é um fato concreto; “eu” e “estômago” não são mais do que extrapolações abstratas. Da mesma forma, se considero o nazismo como um mal, apenas o juízo de valor “mal” é um fato concreto; “eu” e “nazismo” são igualmente extrapolações abstratas oriundas daquela concretude. Como todas as nossas relações, estas sim concretas, implicam a existência simultânea da “coisa” e do “outro”, nada pode ser conhecido se não for experimentado e avaliado, assim como nada pode ser experimentado se não for conhecido e avaliado e nada pode ser avaliado se não for também experimentado e conhecido. A divisão tradicional das disciplinas em Ciência, Política e Arte (respectivamente, conhecimento, valor e experiência) é uma abstração da concretude derivada do mundo da vida, da Lebenswelt formada por relações e conexões intencionais. Conseqüentemente, a eterna querela metafísica entre o idealismo e o realismo se esfarela. A atitude científica se altera, se o que se mostra concreto em termos científicos é precisamente a co-implicação entre conhecimento, valor e experiência, isto é, a pura intencionalidade – a ciência passa a assumir que empresta o sentido (Sinngebung) ao mundo em que vivemos. Logo, da mesma forma que a ciência se dá conta da sua responsabilidade estética, também a arte se dá conta de que ela é uma fonte de conhecimento.

Nós nos apegaríamos à fé na realidade de mesas e mentes porque a concretude do mundo vivido é coberta por grossas camadas de preconceito que nos fazem acreditar em objetos e em sujeitos. É necessário remover ou reduzir essas camadas. Os objetos devem ser libertos para revelar o que são: nós abstratos de intenções. Esse é o processo conhecido como redução fenomenológica (isto é, do fenômeno). Da mesma forma que os objetos, o “eu” deve ser liberto para conhecer o que realmente “sou”: um outro nó abstrato do qual as intenções emanam – essa seria a redução eidética (isto é, do ser). Os dois movimentos tornam possível e consciente a Sinngebung (isto é, a doação do sentido), o que por sua aproxima decisivamente a fenomenologia da literatura e sua teoria.

CRÍTICA FENOMENOLÓGICA

Bib.: André Dartigues. O que é a fenomenologia? (1992). André de Muralt. A metafísica do fenômeno: as origens medievais e a elaboração do pensamento fenomenológico. Bárbara Cassin. Aristóteles e o logos: contos da fenomenologia comum. Edmund Husserl. Investigações lógicas. Edmund Husserl. Meditações cartesianas. Javier San Martín. Fenomenología y cultura en Ortega (1998). Jean-Claude Beaune (org). Phénoménologie et psychanalyse: étranges relations (1998). Jean-François Lyotard. A fenomenologia. José Ortega Y Gasset. Meditaciones del Quijote. José Ortega Y Gasset. Que es la filosofía? Maurice Merleau-Ponty. Fenomenologia da percepção. Robert Magliola. Phenomenology and literature: an introduction (1977). Vilém Flusser. A dúvida (1999). Vilém Flusser. Dinge und Undinge: phenomenologische Skizzen (1993).

Gustavo Bernardo

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