Emmanuel Macedo Tavares
1.INTRODUÇÃO
A Filologia existe desde os séculos V e IV a.C. quando surgiram os primeiros filólogos: Zenódoto de Éfeso, Aristófanes de Bizâncio, Eratóstenes de Cirene e Aristarco de Samotrácia. Eram homens que, primeiramente, abraçaram a Filosofia, ou seja, ‘amaram o saber’ e, com o saber, se preocuparam com o logos, a palavra, a ponto de se apaixonarem e amarem a logia, isto é, a ciência, e passaram a fazer crítica aos textos do poeta mais famoso da época, da Grécia Antiga: Homero. E, assim foi. Comentários, emendas, índices e glossários, excursos bibliográficos, problemas gramaticais, tudo isso com o objetivo de restaurar, tornar intelegível, enfim, explicar os textos para que as gerações da época e futuras entendessem a linguagem literária encontrada, não só nos textos mais antigos, mas, sobretudo, nos poemas de Homero. Portanto, a Ecdótica ou Crítica Textual nasceu praticamente junto com a Filologia, das mãos dos escoliastas. Depois, a Filologia e a Crítica Textual entraram em declínio, tanto na Grécia quanto em outros países onde tinham começado a se desenvolver, até que surgiu, durante a década de 1840-1850, edições críticas com uma nova exposição teórica de obras de Lucrécio e do Novo Testamento editadas pelo alemão Karl Lachmann. A teoria lançada por ele constituiu a Crítica Textual moderna.ii
Lachmann dividiu em etapas os momentos ecdóticos.
E é dentro da segunda etapa, a Emendatio (Originem Detegere), que está o interesse desta apreciação inicial. Tendo-se recolhido e coligido as tradições manuscritas e/ou impressas na etapa primeira, a Recensio, deve-se passar à “originem detegere”, isto é, à “revelar a ascendência ou origem” dos textos tradicionais. Os testemunhos serão apresentados em ordem de filiação desde os originais passando pelas cópias manuscritas e/ou impressas de proveito para a Estemática.iii Aqui, faz-se uma árvore genealógica ou estema (gr. ?????) de acordo com o tipo de transmissão. Feito isto, o editor crítico segue na operação, agora já facilitada, de estabelecimento do texto para sua futura publicação. Esta etapa, a Emendatio, é aquela que diz respeito à Crítica Genética. Quando o editor prepara o estema de uma obra, ele utiliza-se de procedimentos críticos que visam ao estabelecimento final do texto e que consistem numa análise material e gráfica daqueles documentos visando à separar os que valem dos que devem ser eliminados, e, neste caso, os tipos de errosiv ou lições encontrados vão ser de importância capital para a análise crítica em seu trabalho. O estudioso, se quiser, pode, ainda, aprofundar suas críticas quanto à origem daqueles textos, através de exame valorativo dos documentos por ele selecionados e organizados. Isto é a Crítica Genética, parte de uma ciência ou técnica -Ecdótica ou Crítica Textual - que tem por finalidade a fixação de textos literários, valorizando-os e publicando-os.
2. DESENVOLVIMENTO
O preâmbulo foi necessário para que se possa distinguir com clareza o que é proposto por um grupo de estudiosos franceses que se organizaram na década de 70 sob o comando de Louis Hay através do CNRS (Centro Nacional de Pesquisa Científica) na França. Tudo começou com problemas enfrentados pela equipe de pesquisadores de origem alemã liderada por L. Hay, problemas esses, de ordem metodológica, quando lidaram com manuscritos de um poeta alemão: Heinrich Heine. Estes pesquisadores estavam enfrentando problemas semelhantes aos de outros que estudavam manuscritos de Proust, Zola, Valéry e Flaubert. A partir daí surgiu um laboratório apropriado para este tipo de problemas no CNRS: o Institut des Textes et Manuscrits Modernes (ITEM) dedicado ao estudo exclusivo do manuscrito literário. Este estudo específico do manuscrito passou a ser denominado de Crítica Genética ou, em alguns casos, também conhecido por Genética Textual tendo o seu ingresso no Brasil se dado por intermédio do I Colóquio de Crítica Textual: O Manuscrito Moderno e as Edições na Universidade de São Paulo (1985) sob a responsabilidade do Prof. Philippe Willemart.v
Cecília Almeida Salles em seu livro Crítica Genética: uma introdução, refere-se à Crítica Genética como uma ciência nova no início do capítulo Relevância da delimitação à p. 9 e, ainda, no título do capítulo Crítica Genética: uma ciência nova, mais adiante no livro, à p. 13. A questão está em se saber o que é ciência e em se pensar na denominação dada a esta “nova ciência”. Por ciência existem vários conceitos, inclusive, um deles, é dado por Cecília em seu livro; é ele um pensamento de Charles S. Peirce em que este concebe ciência como “um empreendimento de busca interminável, feito por um grupo de pessoas motivado pelo desejo da descoberta ou pelo impulso de penetrar na razão das coisas”.vi Neste caso, temos uma definição simplista para um termo que encerra em si mesmo uma seriedade de extrema significação. Ciência é busca que visa à alcançar a resposta a indagações até então apenas formuladas, mas não é um mero desejo de descobrir ou penetrar na razão das coisas e, sim, uma contínua observação controlada por meio de experimentos ou aplicações que tem como objetivo a generalização de regularidades ou a formulação de leis que possam servir de base para previsões. Segundo Régis Jolivet, ciência é “o conhecimento certo das coisas por suas causas ou por suas leis”.vii Logo, o que se exige de um campo de estudo que tenha pretensões de ciência é, além de seu objeto definido para estudo, que se tenha um método próprio de pesquisa por meio do qual possa formular seus problemas e suas conclusões. E o que se tem numa definição mais ampla para Crítica Genética, é que se trata do interesse pelo processo criativo artístico do escritor literário. É a indagação maior de como foi criada uma obra, a sua gênese, o que levou o autor a produzi-la, quais foram os mecanismos utilizados no processo de fabricação.viii É um trabalho que lida com o texto, o texto em manuscrito, manuscrito que na realidade pode ser um datiloscrito, ou seja, numa ou noutra forma, um original autógrafo. Pode ser um rascunho, uma nota ou mesmo uma rasura (esta de extrema importância para os estudos genéticos) que levará à investigação da construção intelectual no processo genético da criação.ix Qualquer detalhe como uma vírgula acrescentada, um tempo verbal modificado, uma palavra inventada tudo é passível da atenção do geneticista.
Mas é bom que se veja alguns exemplos de aplicação desta “ciência nova”.
Aleilton Santana da Fonseca num artigo publicado no n.o 1 da re- vista Manuscrítica e intitulado “Considerações sobre a eliminação de trechos do capítulo ‘Eu, lírico-trágico-cômico-pastoral’ do romance Agá, de Hermilo Borba Filho”,x tomou algumas versões diferentes daquele capítulo da obra e procurou analisar, sob a ótica genética, as implicações da presença e da ausência de trechos no desenvolver daquela ficção.
Coletou e classificou manuscritos, rascunhos, notas e versões relativos ao capítulo estudado, isto é, o chamado avant-texte ou prototexto na terminologia, francesa e portuguesa, respectivamente, da disciplina genética. As rasuras encontradas por Aleilton na escritura de Hermilo foram chamadas de rasuras de supressão, ou seja, trechos presentes numa versão, mas ausentes em outra, e que teriam sido cometidas dentro de um ajuste do projeto autoral. Os textos eliminados eram fichas médicas que tratavam da loucura do personagem e que levavam a uma interpretação do personagem frente à realidade que o cercava. A análise das fichas levou Aleilton a concluir que a supressão obedeceu a razões de escritura, quer dizer, o que o autor desejou como produto estético final para o seu projeto.
Os comentários relativos ao 3.o episódio e à 3.a ficha são os seguintes, respectivamente:
“/.../ o narrador situa-se na Inglaterra e vive, no plano do seu imaginário, uma aventura como boneco de teatro popular. Diante de uma platéia a quem se dirige conta as peripécias que viveu em suas andanças pelo mundo. Nesse episódio, mais uma vez atualiza sua pulsão de morte sobre Eva, dessa vez representada por uma cacetada na cabeça”, e, “A 3.a ficha registra que continuam as atividades delirantes do paciente e que na terapia ocupacional ele afirmara ser um boneco. Comenta o agravamento de seus distúrbios e a possível ineficácia da medicação e terapia empregadas.”
A principal conclusão a que chegou Aleilton é quanto ao fato de que a eliminação das fichas do texto publicado restaura a soberania do discurso do personagem, permitindo uma dupla interpretação com relação à realidade empírica.
Pode-se tomar, um segundo e importante exemplo de aplicação genética, do artigo “Por uma perspectiva genética em Pedro Nava: fluxo de consciência em Galo-das-Trevas?xi”, do Prof. Emmanuel Macedo Tavares, em que este utilizou a teoria literária, através das técnicas de fluxo de consciência, para mostrar que o escritor Pedro Nava conhecia estas técnicas e empregou-as de maneira artificiosa visando a produzir uma estética diferente para o seu trabalho de ficção literária. O conhecimento das técnicas do fluxo estão presentes nos manuscritos ou datiloscritos da obra e referem-se não só à narrativa ora em 1.a pessoa, como marca de monólogo interior direto, ora indireto com descrição consciente, mas também ao emprego da pontuação em que, como num estilo próprio, utiliza o ponto de interrogação ou de exclamação dentro do núcleo frásico da pergunta ao contrário do que se costuma fazer, ou seja, ao fim da frase.
“Na passagem ‘Às quintas instala-se na nossa rua e sobe a Conde Laje a feira semanal com sua morrinha das bancas de peixe, perfume das flores e das frutas, multicolorido dos legumes, /.../’ - pág. 16 do manuscrito e 22 da Edição - a palavra calçada foi introduzida no lugar de rua, que está riscada, sugerindo preocupação do autor com o termo específico, preciso. O relato em 1.a pessoa da passagem é um entrecorte no tempo marcado pela imagem lembrada do Relógio da Glória a registrar como se fosse para sempre, vinte para as oito.”
A técnica empregada é a narrativa em 1.a pessoa, marca do monólogo interior direto, combinado com as descrições oniscientes que faz do lugar que outrora conhecera. Aqui, pode-se, ainda, observar as rasuras (neste exemplo, por substituição), para se compreender o processo genético artístico.
O emprego artificial das técnicas de fluxo de consciência por Pedro Nava ficou mais patente a partir do momento em que se pode ligar os nomes, por ele aqui e ali citados ao longo da obra, de Marcel Proust - que se interessava pelo sentido do tempo na vida do homem, assim como Nava - e de Henri Bergson - este, responsável pela teoria de la durée, àquelas técnicas.
Para a Crítica Genética, o autor não terminou de escrever a sua obra; ela pode ser considerada uma publicação inacabada, pois que só a análise do prototexto poderá conduzir a outras intenções abandonadas pelo escritor no seu processo criativo. Daí por que as rasuras merecem ser examinadas e interpretadas segundo uma perspectiva de concretização em suspenso, que revela razões recônditas do espítito do escritor e que não passaram ao texto preparado para a publicação.
Ao terminar de escrever, o escritor passa à revisão e na revisão, ele, o leitor de si mesmo, logo, o autor-leitor, rasura, procurando adequar aquilo que desejava dizer de outra maneira, anteriormente, e que achou não conseguir.
Sem que se entre em considerações sobra a tipologia das rasuras, que podem caber em outra oportunidade, pode-se, ainda, recorrer a uma amostra destas ocorrências. Esta é retirada de Carlos Eduardo Galvão Braga, que, ao escrever “O Texto em Movimento: as rasuras no manuscrito hermiliano”xii, fornece um exemplo esclarecedor na análise de uma rasura textual no capítulo “Eu, hermafrodito”, do romance Agá do autor pernambucano Hermilo Borba Filho. É uma rasura relativa ao aspecto verbal:
“Miguel Márquez estava deitado de costas, o enorme membro [apontado] apontando para o alto como uma coluna de carne.”
F. [286] <300>, 1.4-6
Carlos Eduardo explica que o dinamismo da descrição acima deve-se à substituição do sintagma de particípio passado, ‘apontado’, que é de caráter “perfeito, concluso e até permansivo”xiii, pelo gerúndio ‘apontando’ em que este expressa “uma qualificação dinâmica do substantivo, isto é, ligada a uma atividade de caráter verbal”xiv, quer dizer, a natureza estática e pontual do particípio não traduzia, com precisão, a permanência da tensão do membro ereto do personagem em foco.
3. CONCLUSÃO
Em conclusão, o que fica claro é que a Crítica Genética tem a necessidade de se valer de outras ciências para servirem de arcabouço teórico-metodológico de suas pesquisas. É um campo de estudos recente, interessante e original que se diferencia bem daquela parte da Ecdótica que leva o mesmo nome, mas chamá-la de “ciência nova” em surgimento há uma distância muito grande. É um estudo que pode ser aplicado pela psicologia, sociologia, filosofia, teoria literária, lingüística, filologia e quantas ciências puderem e quiserem, dentro de uma perspectiva interdisciplinar, com um único objeto como estudo - o texto do prototexto - e o auxílio metodológico, que podem prestar,para refletir enfim, cientificamente, o objeto-alvo de seus estudos.
E, enquanto se trabalha e se sonha em tornar este novo campo de estudos uma ciência com o seu objeto e métodos próprios definidos, é bom que se pense seriamente numa nova terminologia: ao invés de Crítica Genética (esta já existe, pelo menos há quase 150 anos, desde Lachmann) talvez seja melhor, como alguns já a denominam, Genética Textual ou, quem sabe, Gerativa Textual.
4.RECAPITULAÇÕES SUMÁRIAS
4.1. Resumo
Está surgindo um novo campo de estudos fascinante para o homem de letras moderno. O objeto principal de seus estudos é o texto literário em forma de prototexto, quer dizer, os originais manuscritos ou datiloscritos, os rascunhos, as notas e qualquer outro tipo de escrito gerador de uma futura obra publicável ou publicada. A este novo campo denomina-se Crítica Genética, sem muita oposição formal àquela área da Ecdótica que é especialidade da Filologia Clássica. É um estudo que não possui um método próprio. É uma ciência nova?
4.2. Resumé
Il est en train de surgir un nouveau champ attrayant d’études pour l’homme de lettres moderne. L’objet principal de leur études c’est le texte littéraire en forme d’avant-texte, c’est-à-dire, les originaux manuscrits ou dactyloscrits (ou dactylographié), les brouillons, les notations et quelconques d’autres types d’écrit générateur d’une future Œuvre publiable ou publiée. On se nomme ce nouveau champ de Critique Génétique sans une opposition très formelle à laquelle partie de l’Écdotique que est une spécialitée de la Philologie Classique. C’est une étude que ne possède pas une méthode propre. Est-elle une science nouvelle?
5. BIBLIOGRAFIA
1. BRAGA, Carlos Eduardo Galvão. O texto em movimento: as rasuras no manuscrito hermiliano. In: MANUSCRÍTICA, n.o 1. São Paulo: Associação dos Pesquisadores do Manuscrito Literário (APML), 1990, p. 44-59.
2. FONSECA, Aleilton Santana da. Considerações sobre a eliminação do capítulo “Eu, lírico-trágico-cômico-pastoral”do romance Agá, de Hermilo Borba Filho. In: ____ MANUSCRÍTICA, n.o 1. São Paulo: Associação de Pesquisadores do Manuscrito Literário (APML), 1990, p. 21-29.
3. HOUAISS, Antônio. Elementos de Bibliologia. São Paulo: HUCITEC/PRÓ-MEMÓRIA/INL, 1.o v., 1977.
4. MELO, Gladstone Chaves de. Iniciação à Filologia e à Lingüística Portuguesa. Rio de Janeiro: Ao Livro Técnico S/A, 1984.
5. SALLES, Cecília Almeida. Crítica Genética: uma introdução. São Paulo: EDUC, 1992.
6. SPINA, Segismundo. Introdução à edótica: crítica textual. São Paulo: Cultrix, 1977.
7. TAVARES, Emmanuel Macedo Por uma perspectiva genética em Pedro Nava: fluxo de consciência em “Galo-das-Trevas”? In: ___ REVISTA PHILOLOGUS, Ano 1 - n.o 1, janeiro/abril-1995. Rio de Janeiro: Círculo Fluminense de Estudos Filológicos e Lingüísticos (CiFEFiL), 1995, p. 29-36.
6. NOTAS
i. SPINA, S., (1977), p. 61.
ii. Op. cit., p. 66.
iii. Id. ib., p. 95.
iv. HOUAISS, A., (1967), p. 216.
v. SALLES, C. A., (1992), p. 9, 10.
vi. Op. cit., p. 13.
vii. JOLIVET, RÉGIS Traité de Philosophie, I, 2.a ed., Emmanuel Vite, Lyon-Paris, 1945, p. 158-59. apud MELO, G. C. de, (1984), p. 5.
viii. SALLES, C. A., (1992), p. 18, 19.
ix. Op. cit., p. 39.
x. FONSECA, A. S. da., in: MANUSCRÍTICA, (1990), p. 21-29.
xi. TAVARES, E. M., in: REVISTA PHILOLOGUS, (1995), p. 29-36.
xii. BRAGA, C. E. G., in: MANUSCRÍTICA, (1990), p. 44-59.
xiii. CÂMARA JR., J. M. Dicionário de lingüística e gramática , 8.a ed. Petrópolis: Vozes, 1978, p. 60. apud BRAGA, C. E. G., in: MANUSCRÍTICA, (1990), p. 53.
xiv. Idem, ibidem.
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