O estruturalismo foi reinante nas décadas de 1960, apesar das resistências do existencialismo e do marxismo. Na lingüística, havia uma aparente unidade em A fundação da Análise do Discurso
torno das teorias saussureanas. “Do funcionalismo de Martinet às teorias behavioristas da comunicação, o pensamento de Saussure se estende até o estruturalismo distribucional de Bloomfield” (PÊCHEUX, 1999, p.10).
O estruturalismo conferiu cientificidade aos estudos da linguagem. Mas à medida que a Era Ouro da qual Hobsbawm falava ia passando, o estruturalismo, conseqüentemente, entrava em crise. Se, nos anos 60, não se encontrava um lingüista que não devesse algo a Saussure, como bem falou Benveniste, nos anos 70, suas obras passaram a ser questionadas, e nos anos 80, houve um “largo consenso anti-saussuriano” (PÊCHEUX, 1999, p.13).
Michel Pêcheux (1999) diz que desde a publicação do Curso de Lingüística Geral (1919) até os anos 1950, as teorias lingüísticas giraram em torno de Saussure, ora filiando-se a ele, ora dela se distanciando. Essas “diásporas e reunificações” demonstram o quanto a recepção das obras do genebrino foram descontinuidades. O que, de um lado, já revela a polissemia inerente à linguagem.
A história das interpretações das idéias saussureanas acompanha a história das revoluções e das guerras do século XX. Trubetzkoy e Jakobson fugindo às perseguições migram de um círculo a outro. Trubetzkoy desaparece, Jakobson sobrevive e migra para os Estados Unidos e da América faz as idéias saussureanas chegarem à França. No pós-guerra dos anos 50, ocorreu uma aparente reunificação (GREGOLIN, 2005, p. 102).
As mudanças na conjuntura francesa no final dos anos 60 desordenaram o sistema de alianças que existia em torno da lingüística (PÊCHEUX, 1999). Os acontecimentos de maio de 1968 provocaram brechas no poderio das estruturas. “As estruturas não vão às ruas” diziam. A sublevação social repercutiu no campo epistemológico. Os intelectuais passaram a questionar os saberes até então estabelecidos.
Maio de 68 produziu uma exasperação da circulação dos discursos, sobre as ondas, sobre os muros e na rua. Mas, também, no silêncio das escrivaninhas universitárias. Era o tempo da multiplicação das releituras, das grandes manobras discursivas; os conceitos se entrechocavam: a luta de classe reinava na teoria. (COURTINE, 2006, p. 9)
As constantes releituras que se faziam das obras de Saussure provocaram movências epistemológicas tanto do objeto, como do método da lingüística. Tanto a sistematicidade da língua, quanto a assistematicidade da fala foram postos em discussão. A linguagem passou a ser vista como um ramo de estudo muito complexo para estar limitada ao sistema saussuriano. “Atrás da fachada visível do sistema, supomos a rica incerteza da desordem” (FOUCAULT, 2005, p. 85).
A fala, o sujeito, a ideologia, o social, a história, a semântica e outras exclusões operadas por Saussure são trazidas para as discussões lingüísticas. A partir de então, surgem quase concomitantemente, várias disciplinas que estilhaçarão a teoria da linguagem. Rompem com a sincronia e corte saussuriano, e propõem uma análise transfrástica e subjetiva da linguagem.
O reconhecimento da dualidade constitutiva da linguagem, isto é, do seu caráter ao mesmo tempo formal e atravessado por entradas subjetivas e sociais, provoca um deslocamento nos estudos lingüísticos até então batizados pela problemática colocada pela oposição língua/fala que impôs uma lingüística da língua.
Estudiosos passam a buscar uma compreensão do fenômeno da linguagem não mais centrado apenas na língua, sistema ideologicamente neutro, mas num nível situado fora desse pólo da dicotomia saussureana. E essa instância da linguagem é o discurso. Ela possibilitará operar a ligação necessária entre o nível propriamente lingüístico e o extralingüístico (BRANDÃO, 1993, p. 11-12).
O surgimento dessas disciplinas e as contundentes críticas que faziam ao estruturalismo provocam, neste, o desmoronamento de seu edifício teórico. Em meados dos anos 1980, “a lingüística perdeu progressivamente seus ares de ciência-piloto no campo das Ciências Humanas e Sociais” (PÊCHEUX, 1999, p. 13), de modo que “a maior parte das forças da Lingüística pensa neste momento contra Saussure” (PÊCHEUX, 1999, p.9). A Análise do Discurso contribui para esse trágico destino do estruturalismo.
A Análise do Discurso aparece no final dos anos 1960. Michel Pêcheux lança, em 1969, o livro Análise Automática do Discurso que, para a maioria dos estudiosos, representa a fundação dessa disciplina. “Pela primeira vez na história, a totalidade dos enunciados de uma sociedade, apreendida na multiplicidade de seus gêneros, é convocada a se tornar objeto de estudo” (CHARAUDEAU, 2004, p. 46).
Pêcheux coloca em cena o discurso como objeto de análise. Este elemento diferencia-se tanto da língua, quanto da fala. Não é a mesma coisa que transmissão de informação, nem é um simples ato do dizer. O discurso evoca uma exterioridade à linguagem – a ideológica e o social.
Inicialmente, podemos afirmar que discurso, tomado como objeto da Análise do Discurso, não é a língua, nem texto, nem a fala, mas que necessita de elementos lingüísticos para ter uma existência material. Com isso, dizemos que discurso implica uma exterioridade à língua, encontra-se no social e envolve questões de natureza não estritamente lingüística. Referimo-nos a aspectos sociais e ideológicos impregnados nas palavras quando elas são pronunciadas (FERNANDES, 2005, p. 20).
O discurso foi conceituado como a língua posta em funcionamento por sujeitos a que produzem sentidos numa dada sociedade. A complexidade desse fenômeno ia muito além do que a epistemologia tradicional previa. O discurso se inscreve na confluência de três regiões do conhecimento científico.
A Análise do Discurso nasce no entremeio de três disciplinas, de modo que, desde sua gestação, evoca a interdisciplinaridade. De acordo com Pêcheux, o nascimento da Análise do Discurso foi presidido por uma “tríplice aliança”. Uma teoria da História, para explicar os fenômenos das formações sociais; uma teoria da Lingüística, para explicar os processos de enunciação; e uma Teoria do Sujeito, para explicar a subjetividade e a relação do sujeito com o simbólico. Como vimos, o discurso é um objeto de estudo que não tem fronteiras definidas. Ele é tridimensional - está na intersecção do lingüístico, do histórico e do ideológico. Por isso, foi inevitável para a Análise do Discurso romper com os postulados da lingüística clássica, já que, se define como o estudo lingüístico das condições de produção de um enunciado.
Paveau (2006, p. 202) definiu a Análise do Discurso como “a disciplina que estuda as produções verbais no interior de suas condições sociais de produção”. Já Orlandi (2005, p. 26), “A análise do discurso visa a compreensão de como um objeto simbólico produz sentidos, como ele está investido de significância para e por sujeitos”.
A Análise do Discurso não busca uma verdade nuclear do signo, pois é contra a imanência estruturalista. O que ela pretende é reconstruir as falas que criam uma vontade de verdade científica em certo momento histórico. Busca-se verificar as condições que permitiram o aparecimento do discurso. Explicar por que tomou esse sentido e não outro. Sempre relacionando o lingüístico com a história e com o ideológico.
A Análise do Discurso não trabalha com a língua enquanto um sistema abstrato, mas com a língua no mundo, com maneiras de significar, com homens falando, considerando a produção de sentido enquanto parte de suas vidas, seja enquanto sujeitos, seja enquanto membros de uma determinada forma de sociedade. (ORLANDI, 2005, p. 15-16).
A verdade é uma construção discursiva. A evidente naturalidade, na verdade, é uma miragem discursiva. Os políticos criam essa miragem e enganam centenas de pessoas. O alvo de todo grupo político é se tornar em força hegemônica.
A hegemonia é sustentada pelo discurso. Daí não é difícil chegar à conclusão de que “o discurso não é simplesmente aquilo que traduz as lutas ou os sistemas de dominação, mas aquilo por que, pelo que se luta, é o poder do qual nos queremos apoderar”, já diria Foucault (1999, p. 10). Tomar a palavra jamais representa um gesto ingênuo, pois sempre está ligado a relações de poder.
Portanto, a Análise do Discurso não foi projetada para ser apenas um simples campo de estudo, mas para ser um instrumento de luta política. Dentre outras funções, pretendia desmascarar as verdades construídas por políticos oportunistas, pois a verdade é “sempre uma reta em direção ao poder” (SILVA, in: SARGENTINI, 2004, p. 178).
Conhecer a produção, a circulação e a recepção dos discursos passou a ser uma atitude revolucionária, pois expunha as entranhas da relação do saber científico com as técnicas de poder. Daí a importância de relacionar um acontecimento discursivo às condições históricas, econômicas e políticas de seu aparecimento. Até por que, no bojo de sua formação, houve inúmeras micro-resistências que precisam ser resgatadas, pois também significam.
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