Foucault criou os instrumentos teóricos essenciais para refletirmos sobre as novas formas de biopolítica no século 21
Vinte e cinco anos após sua morte, as ideias do filósofo francês continuam no cerne das pesquisas em ciências humanas: da psicologia ao direito; da filosofia à educação
As marcas de sua genialidade intelectual já se anunciavam em sua primeira grande obra, A história da loucura na idade clássica, publicada em 1961. Abria-se ali o espaço de pesquisas que Foucault denominou como uma arqueologia das ciências humanas, e que culminaria em obras fundamentais como As palavras e as coisas, O nascimento da clínica e Arqueologia do saber. Nelas, o autor empreendeu uma crítica não epistemológica da razão, isto é, um questionamento que não visava avaliar a evolução histórica da cientificidade das ciências, mas trazer à luz os pressupostos profundos que permitiram à modernidade entronizar a razão como critério absoluto a partir do qual se poderia determinar, por exemplo, o ser da loucura. Assim, ao elaborar sua peculiar história da loucura, Foucault abriu mão da ideia de que a relação histórica entre razão e loucura se dera a partir da contínua e gradual conquista das luzes sobre as sombras, roteiro em que a psiquiatria representava a conquista da suposta verdade da loucura enquanto doença mental e a consequente libertação do louco em relação a velhos preconceitos.
Por outro lado, e de maneira mais ambiciosa, Foucault se perguntou como foi que se definiu a moderna decisão que apartou a razão de seu outro, contando-nos uma história na qual o saber psiquiátrico era compreendido como a etapa derradeira de um longo processo de silenciamento da desrazão, cujos primeiros sintomas já se deixariam evidenciar em acontecimentos do século 17 como a instituição do Hospital Geral, o grande internamento e a metafísica de Descartes. Segundo Foucault, Descartes teria excluído a loucura do processo da dúvida metódica que leva à descoberta do cogito, explicitando assim a decisão fundamental da modernidade em opor a ordem da razão à desordem da desrazão: se duvido, penso, e se penso não posso ser louco.
Em As palavras e as coisas, Foucault formulou o polêmico conceito de épistémè. Aludia-se com ele a uma ordem ou princípio de ordenação dos saberes anterior a qualquer enunciado visando o conhecimento, de modo que a épistémè epistémé seria a instância arqueológica profunda que tornaria qualquer enunciado possível: tratava-se de nomear o solo fundamental que conferiria legitimidade e positividade ao saber de cada época. Em outras palavras, Foucault não se propunha a fazer uma história das ciências ou uma história das ideias, mas procurava descrever a configuração e as transformações históricas das diferentes épistémès, as quais marcariam diferentes possibilidades de pensamento e conhecimento, sem qualquer linearidade progressiva na passagem de uma épistémè a outra. Subjacente a toda cultura e, portanto, a toda forma de conhecimento, Foucault detectava a existência de uma ordem, de um espaço de identidades, de similitudes e de analogias por meio das quais classificamos e distribuímos os objetos do conhecimento. A obra era polêmica e despertou grande interesse e muitas críticas, pois Foucault foi acusado de hipostasiar a história e a práxis humana por detrás da ação silenciosa de estruturas anônimas.
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Foucault descobriu que os micro-poderes disciplinares exerciam seus efeitos discretos sobre os indivíduos, visando transformar os corpos em "dóceis e úteis" |
Em 1970, Foucault foi eleito para o prestigioso Collège de France e sua aula inaugural, A ordem do discurso, sinalizou uma virada em suas reflexões. Por certo, a política não estivera ausente das pesquisas arqueológicas, como testemunha seu acirrado embate com Sartre, a fenomenologia francesa e com os marxistas. Entretanto, agora Foucault não mais se contentava em avaliar as condições arqueológicas de ordenação dos enunciados, mas começava a interrogar os sistemas de exclusão e rarefação que envolvem toda enunciação discursiva. Sob forte inspiração nietzscheana, Foucault passava a questionar certas figuras histórico-políticas da vontade de verdade e da vontade de saber que permearam a história ocidental, perguntando-se, então, quem pode dizer algo e sob quais condições institucionais. Iniciava-se assim o período de suas investigações genealógicas, centradas no questionamento específico das relações intrínsecas entre saber-poder-verdade. Foucault insistirá em que não há verdade fora do poder ou sem o poder, pois toda verdade gera efeitos de poder e todo poder se ampara e se justifica em saberes considerados verdadeiros.
Nas pesquisas genealógicas dos anos 1970, Foucault analisou a constituição histórica das relações de poder em seu caráter produtivo e eficaz em obras fundamentais como Vigiar e punir e o volume I da História da sexualidade. Nelas, ele questionou a concepção filosófica moderna do sujeito constituinte e substituiu-a pela concepção de que o sujeito é constituído historicamente, simultaneamente à constituição das práticas e dos discursos que se multiplicaram nas diversas instituições sociais nascentes a partir do século 17, tais como a escola, o hospital, o quartel, as fábricas.
Quanto à análise das relações de poder, observava-se uma dupla inovação: por um lado, Foucault desviava os olhos da relação jurídica entre o Estado e o cidadão para lançar seu olhar microscópico sobre as múltiplas relações de poder presentes nas instituições sociais nas quais se forjou o indivíduo disciplinado e normalizado. Por outro lado, fugindo à tópica do poder repressor, Foucault descobriu que os micro-poderes disciplinares exerciam seus efeitos positivos e discretos sobre o corpo dos indivíduos visando transformá-lo num corpo dócil e útil, segundo a conhecida fórmula de Vigiar e punir. Com as pesquisas genealógicas, Foucault se propôs a investigar como se produziu o indivíduo moderno, o sujeito sujeitado e disciplinado em seus gestos, comportamentos, discursos, etc.
Se o ponto de partida da genealogia foucaultiana do poder foi a descoberta dos micro-poderes disciplinares que visavam à administração do corpo individual, seu ponto de chegada foi a descoberta do biopoder e da biopolítica. Tratava-se de uma nova forma de exercício do poder soberano, nascente na passagem do século 18 para o 19, cujo alvo não era mais a produção do indivíduo dócil e útil, mas a gestão calculada da vida da população de um determinado corpo social. Foucault chegou à descoberta do biopoder ao analisar o que chamou, em História da sexualidade, de dispositivo da sexualidade, isto é, a sexualidade como o produto de discursos científicos e morais pautados pela vontade de saber, pelo ideal de normalidade e pela obsessão em esconjurar e escrutinar a anormalidade. Foucault descobriu que o sexo não era apenas a matriz privilegiada para o exercício dos poderes disciplinares, pois também constituía o foco por excelência para o gerenciamento planificado de fenômenos populacionais como as taxas de nascimento e mortalidade, as condições sanitárias das cidades, os índices de contaminação, etc.
A partir do século 19, interessava ao novo poder estatal estabelecer políticas higienistas por meio das quais se poderia sanear o corpo da população, depurando-o de suas infecções internas. Novamente se evidencia a genialidade de Foucault: ali onde nossa consciência iluminista nos levaria a louvar o caráter humanitário de intervenções políticas visando incentivar, proteger, estimular e administrar as condições vitais da população, Foucault descobriu o elo fatal entre higienismo, eugenia, racismo e genocídio. Em uma palavra, ele compreendeu que a partir do momento em que a vida passou a se constituir no elemento político por excelência, tal cuidado político da vida trouxe consigo a exigência contínua e crescente da morte em massa, pois é apenas no contraponto da violência depuradora que se podem garantir mais e melhores meios de sobrevivência a uma dada população. Eis, portanto, o motivo pelo qual o século 20 pôde testemunhar o advento do nazismo e do stalinismo, para não mencionar os inúmeros casos em que democracias liberais valeram-se do racismo e do extermínio para lidar com suas 'enfermidades' e 'patologias' sociais.
O conceito de biopolítica é um dos principais legados teóricos de Foucault, tendo sido retomado e revisado pela reflexão de Giorgio Agamben ( leia artigo neste dossiê), Roberto Esposito, François Ewald, Michel Sennelart, Michael Hardt e Antonio Negri, dentre outros. Com ele, Foucault não apenas nos ofereceu uma ferramenta para pensar os fenômenos extremos do nazismo e do stalinismo, como também nos concedeu um importante instrumento para pensar as novas formas biopolíticas de controle neoliberal de populações. Em Nascimento da biopolítica, curso de 1979, Foucault já indicava que o mercado competitivo tornar-se-ia a instância da produção de uma nova figura subjetiva, aquela que procura responder da melhor maneira possível às exigências e demandas variadas do próprio mercado econômico, tornando-se, para tanto, um empreendedor de si mesmo. Com muita perspicácia, Foucault compreendeu que o mercado das sociedades empresariais seria o lugar privilegiado ao qual nos reportaríamos a fim de nos tornarmos agentes econômicos competitivos. A profecia parece ter se cumprido, pois cada vez mais tornamo-nos presas voluntárias de processos de individuação e subjetivação controlados flexivelmente pelo mercado e seus ideais normativos.
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