O poeta e ensaísta Ivan Junqueira, tradutor e estudioso de Baudelaire, discute o legado do poeta francês
CULT - Qual a influência de Charles Baudelaire na poesia brasileira?
Ivan Junqueira - Uma influência imensa e, o que é mais importante, duradoura, já que Baudelaire, talvez mais ainda do que Edgar Allan Poe, é o fundador daquilo que hoje entendemos como modernidade. Essa influência, entretanto, é assimétrica, ou seja, sua intensidade não é a mesma nas diversas etapas de nossa evolução poética. Ela foi quase nula, por exemplo, durante a vigência do movimento modernista de 1922. Graças ao seu satanismo, Baudelaire causou funda impressão nos poetas de nossa segunda geração romântica, sobretudo em Álvares de Azevedo, e começou a ser muito traduzido entre nós a partir de 1871, quando os poetas Carlos Ferreira, gaúcho, e Luís Delfino, catarinense, o verteram pela primeira vez para o idioma de Camões. Sua influência foi avassaladora junto à geração simbolista, em fins do século XIX, e até mesmo os parnasianos, no início do século XX, não escaparam ao seu fascínio. Essa influência se acentuou entre 1932 e 1933, quando Félix Pacheco promoveu, nas páginas do Jornal do Commercio, um verdadeiro revival baudelairiano, com numerosas traduções do autor de As flores do mal, além de diversos estudos sobre a sua obra. Em seu Baudelaire no idioma vernáculo (1963), Tavares Bastos arrola, até o fim da década de 1960, nada menos que 468 versões de poemas de Baudelaire por parte de 46 diferentes tradutores brasileiros. E a partir daí esse fascínio só fez crescer, tanto assim que já dispomos hoje de três versões integrais de As flores do mal: a de Jamil Almansur Haddad (1958), a de Ignácio de Souza Motta (1971) e a minha própria, que é de 1985 e que foi depois acrescida da tradução dos poemas que constam da "Juvenília" do autor ( Baudelaire. Poesia e prosa, Nova Aguilar, 1995). Arrisco-me a dizer que a influência de Baudelaire jamais deixará de se exercer entre nós, pois é com ele, acima de qualquer outro, que tem início a poesia moderna no Ocidente. Baudelaire é um poeta eterno, assim como Homero, Dante, Petrarca, Camões ou Leopardi.
CULT - No seu ensaio introdutório ao livro As flores do mal, o senhor comenta acerca do caráter contraditório do cristianismo de Baudelaire. Poderia dizer algo a respeito?
I.J. - Penso que não há dúvida alguma quanto à vocação cristã de Baudelaire, mas é bom lembrar que há um abismo entre essa vocação e o que se poderia entender como sua atuação cristã. O que mais desconcerta no tocante a essa questão é perceber a fáustica oscilação de Baudelaire entre Deus e o Diabo, o que o leva amiúde à prática das mais ingênuas e primitivas formas de maniqueísmo, o que se agrava devido ao uso que fazia o poeta de termos litúrgicos inadequados e cujo exato sentido ele decerto não chegou a compreender. Por isso mesmo, sempre que abordam temas religiosos, seus poemas acusam uma dupla impertinência: a da linguagem e a das noções expressas por essa linguagem. Há que se entender ainda que Baudelaire não era propriamente uma anima naturaliter christiana, e sim uma anima naturaliter religiosa, capaz, portanto, de criar uma religião particular que nenhuma relação guardasse com a religião tradicional, como acontece no poema "As litanias de Satã", no qual o poeta estabelece um estranho gnosticismo neopagão e maniqueísta. Baudelaire tinha uma noção muito aguda do conceito de pecado original, bem como uma idéia muito clara e vital da redenção, mas seu cristianismo é dilacerado e dilacerante, além de subjugado por um dualismo que em parte lhe explica o dilemático perfil de anjo e demônio. Dentre os ensaístas católicos que lhe analisaram a obra, parece-me que T. S. Eliot foi um dos que mais perto chegaram do nervo da questão, quando sustenta que o satanismo baudelairiano poderia constituir uma oblíqua via de acesso ao cristianismo, já que, considerado em si próprio, ou seja, dissociado de sua parafernália imagística e conceitual, esse satanismo não deve ser entendido como simples afetação, e sim como uma tentativa de alcançar o cristianismo pela porta dos fundos. É isso o que se vê no medonho espetáculo da crucifixão encenado por Baudelaire no poema "Uma viagem a Citera", pois que aí o papel principal não cabe àquele que morreu na cruz para nos salvar, mas sim ao que nela deveria padecer para condenar aquele que não nos salvou.
CULT - A atividade de Baudelaire se dividiu entre a poesia, a crítica de arte e a literária e a tradução. Qual desses era o melhor Baudelaire?
I.J. - Sem dúvida, o poeta, pois, sem o concurso deste, Baudelaire não teria sido o crítico que foi. É o poeta que ilumina a atividade do crítico, como acontece, aliás, no caso de outros grandes poetas que se tornaram críticos notáveis. No caso de Baudelaire, tanto a crítica literária quanto a de artes plásticas são fundamentais para a compreensão do pensamento estético de sua época e de tudo o que viria depois, isto é, depois da arte romântica. Muitos escritores e pintores de meados do século XIX, como Manet, Délacroix, Degas, Daumier, Guys, Balzac, Victor Hugo, Vigny, Gautier, Stendhal, Flaubert, Banville ou Leconte de Lisle, e mesmo o compositor alemão Richard Wagner, devem boa parte de seu reconhecimento junto ao público europeu à sagacidade e à visão premonitória dos ensaios que lhes consagrou o autor de As flores do mal. Quanto à atividade tradutória, convém lembrar que se deve a Baudelaire a tradução para o francês de quase toda a obra em prosa de Poe, cuja doutrina estética, sobretudo no que toca à poesia, exerceu forte influência sobre o poeta francês.
CULT - Quais são os desafios e as alegrias de tantos anos de dedicação à obra de Charles Baudelaire?
I.J. - Quando me decidi, atendendo a um convite de Pedro Paulo Sena Madureira, a verter para a nossa língua toda a obra poética de Baudelaire, impus-me o mais árduo e áspero dos desafios, ou seja, o de manter, em português, a integridade de todos os esquemas métricos, estróficos e rímicos do original. No que concerne a Baudelaire, um dos mais consumados artistas do verso de que já teve notícia a literatura ocidental, essa imposição era inarredável. E aí começaram as dificuldades e as armadilhas de toda sorte, o que me levou por diversas vezes a cogitar de desistir da empreitada. Quem me impediu de fazê-lo foi o grande poeta Dante Milano, ele próprio competente tradutor não só de Baudelaire, mas também de Dante Alighieri e Mallarmé. Diante de meu desespero e de minha absoluta impotência perante os mistérios e desafios da poesia baudelairiana, ele costumava consolar-me, dizendo: "Ivan, pode-se sempre traduzir o que um poeta quis dizer, embora não se possa traduzir o que ele disse". Assim, ao longo de cinco anos, dediquei-me a verter para a nossa língua o que Baudelaire "quis dizer", já que o que ele "disse" disse-o apenas em francês. Não estou com isso querendo dizer que sua poesia, como a de qualquer outro grande poeta, seja intraduzível, mas apenas alertando para o fato de que uma tradução é aquilo que o homo ludens, o tradutor, serve sob a forma de "poesia alheia" a partir daquela que foi criada em outra língua pelo homo faber. Procurei apenas fazer com que Baudelaire falasse em português, pois o leitor brasileiro é quase sempre um monoglota, ou seja, somente fala e lê a sua própria língua. Esta é a razão pela qual as traduções são de suma importância em nosso país. Quanto às alegrias a que você se refere nesta última pergunta, correm elas por conta de um resultado final que considero pelo menos digno e que foi muito bem recebido pelo público e pela crítica, tanto assim que minha tradução soma dez edições. Talvez tenha valido a pena perder (ou ganhar?) cinco anos de minha vida engalfinhado com as "flores doentias" de Charles Baudelaire.
Ivan Junqueira nasceu no Rio de Janeiro (RJ) em 1934. É poeta, conferencista, ensaísta, tradutor. Publicou, dentre outros, Os mortos, O grifo, A sagração de ossos (poemas), O signo e a sibila, O fio de Dédalo (ensaios), e traduziu T.S. Eliot, Baudelaire, Leopardi e Proust.
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