A revolução feminista da Ficção Científica


A ficção científica feminina, que no passado se ocultava sob pseudônimos masculinos, ajudou a quebrar os clichês do gênero e teve como mais célebre representante no Brasil a escritora Dinah Silveira de Queiroz
Finisia Fideli
Um olhar desavisado pode fazer supor que, na era de ouro da FC (ou seja, os anos 50), havia uma espécie de "Clube do Bolinha" tanto em relação aos escritores quanto aos leitores. Esse gênero literário nasceu de uma mulher, Mary Shelley, autora do inigualável romance Frankenstein em 1818. Um breve exame dos magazines dos anos 50 mostra uma extensa lista de mulheres escritoras, que costumavam se esconder atrás de suas iniciais ou de pseudônimos masculinos, escreviam FC ou Fantasia com protagonistas masculinos e para uma audiência essencialmente masculina. O que mudou nas décadas de 60 e 70 é que não apenas aumentou o número de mulheres escritoras, mas também o tipo de assunto sobre o qual elas passaram a escrever. O movimento feminista mudou a ficção científica. Um exemplo típico é o de Ursula K. Le Guin, que escrevia FC e fantasia tradicionais e, em 1969, publicou um dos mais influentes romances desta segunda metade de século, A mão esquerda das trevas, um exame brilhante de estereótipos de gênero sexual (entre outras coisas). A partir daí, muitas outras autoras escreveram textos envolvendo mulheres fortes, antes raras na FC. Mais do que isso, surgiram obras de crítica feminista, às vezes amargas como The female man (1975), de Joanna Russ, bem como uma série de contos feministas produzidos por Alice Sheldon (que usou o pseudônimo de James Tiptree Jr.) no final dos anos 60. O processo continua até hoje, com autoras que fazem FC sofisticada, abordando entre outras coisas o relacionamento entre os sexos, a violência, a ecologia, o pacifismo e o abuso infantil. É claro que vários autores homens também escreveram com a perspectiva feminina, como John Varley, Samuel Delany e Kim Stanley Robinson, com resultados muito satisfatórios, e pudemos ter acesso a autores que introduziram características homossexuais em sua ficção, como Thomas M. Disch. O gênero ficção científica se desenvolveu numa cultura patriarcal. Naquela época, quando as personagens femininas apareciam, eram definidas pelo seu relacionamento com as personagens masculinas, objetos a serem desejados, temidos, salvos ou destruídos. Mais tarde, quando a FC ficou sexualmente mais explícita, as mulheres apareceram apenas para validar o protagonista como macho e heterossexual. Antes dos anos 60, as mulheres escritoras tendiam a refletir o ponto de vista de que a mulher do futuro pilotava panelas e fogões automáticos em cozinhas robotizadas, enquanto os homens iam lá para fora e se aventuravam em locais nunca dantes navegados.
E, durante todo o tempo, as personagens eram representadas dentro de uma gama meio restrita de estereótipos: a "virgem tímida" (filha ou sobrinha do cientista ou do capitão da nave, onde o herói vai resgatá-la), a "rainha das Amazonas" (sexualmente desejável e aterrorizante ao mesmo tempo, costumava ser "domada" pelo herói supermásculo ou, então, era identificada como a vilã da história e morria volatilizada pela pistola de raios do garanhão), a "cientista solteirona frustrada" (muito inteligente mas restrita ao seu laboratório, é a melhor amiga do protagonista e o auxilia a resolver todos os problemas da trama, mas perde o amor dele para a mocinha virgem tímida - um exemplo para jovens leitoras, mostrando que carreira de sucesso é igual à falência feminina), a "boa esposa" (virgem tímida no futuro, que fica quieta nos bastidores, amando seu homem e não arrumando encrenca), a "irmãzinha traquina" (que tem um semblante de autonomia, até que sua sexualidade desabroche e a transforme em virgem tímida e, se tiver sorte, em boa esposa), a "deusa de plástico" (feita de silicone, perfeita por fora e vazia por dentro; não se enquadra na categoria de virgem tímida e precisa tomar cuidado para não ser confundida com a rainha das Amazonas, mas sim uma boa esposa), a "suspirante" (tem empatia com todos, resolve todos os problemas e sofre como uma boa mamãe). É claro que os protagonistas masculinos também encontravam sua gama de estereótipos: havia o herói macho, o cientista galã, o cientista velho, o herói brincalhão, o amigo do herói, o cientista maluco vilão e o maluco amigável, além de toda sorte de bandidos dos mais variados quilates e de alienígenas e robôs. Via de regra, as mulheres ou eram perseguidas pelos vilões ou pelos mocinhos, e o resultado dessa perseguição só era definido pelo comportamento da moça em questão. Clichê por clichê, pelo menos os homens se divertiam mais. Mas a ficção científica passou a explorar assuntos mais sérios, principalmente pelos escritores mais atualizados. As mulheres foram atraídas pela nova imagem da FC e passaram a exigir protagonistas mais verdadeiras; vendas atingiram números inimagináveis, e a presença de protagonistas femininas passou a ser um fator comercial importante. Um possível best seller não podia mais ignorar a audiência feminina, e as mulheres nos cargos de edição facilitaram a entrada de escritoras nesse mercado em franca expansão.

Durante algum tempo, os velhos estereótipos perduraram, embora mulheres escritoras trouxessem mais e mais uma mudança subversiva: a boa esposa casou com uma piloto-estelar lésbica; a cientista ficou rica e tem uma movimentada vida sexual, a rainha das Amazonas tem uma corte de príncipes-consortes e, triunfalmente, se recusa a ser domada. É claro que sempre existiram escritores que se esforçaram para incluir mulheres-soldados e cientistas em suas obras, mas eles eram incapazes de responder quem ia pilotar as panelas, cuidar das crianças e fazer surgir essa sociedade revolucionária. E o cinema? Infelizmente, nesse campo a FC não acompanhou os esforços das mulheres. Muitas vezes, elas continuavam aparecendo como vítimas, robôs ou prostitutas (às vezes, tudo ao mesmo tempo). Continuam esperando pacientemente pelo herói na cozinha ou no quarto. Ainda precisam ser resgatadas por ele e, não raro, são as causadoras dos dissabores do protagonista, atrapalhando sua missão ou colocando todo mundo em perigo quando tropeçam bem na frente do alienígena de muitas cabeças e precisam ser salvas no último momento. Uma deliciosa exceção encontra-se na trilogia Guerra nas estrelas de George Lucas, onde a princesa Leia, ao ser resgatada das garras de Dart Vader, é obrigada a arrancar a arma de raios das mãos do galã Han Solo e resolver a parada por conta própria, fugindo através dos ductos de eliminação de lixo da estação espacial Estrela da Morte. Outro momento que não pode ser desconsiderado está na famosa série de televisão Jornada nas estrelas, em plena década de 60, onde Gene Roddenberry ousou colocar simultaneamente uma oficial mulher e negra na ponte de comando da nave estelar Enterprise, além de dezenas de mulheres interessantes e notáveis num sem número de episódios.
Mas o filme Alien, de Ridley Scott (1979), trouxe uma notável exceção, a personagem Ripley, protagonizada por Sigourney Weaver, é uma mulher herói.
Ficção científica brasileira: o papel da mulher
Tão desconsiderado no Brasil, o gênero ficção científica tem contado com a colaboração de mulheres escritoras desde os seus primórdios. Para os aficionados de hoje e de ontem, não existe melhor ponto de referência do que a Coleção Ficção Científica GRD, sem dúvida a melhor amostra do que se faz em FC no Brasil há várias décadas, sob a batuta pioneira do editor Gumercindo Rocha Dorea. É dele o mérito de ter publicado (e ainda estar publicando) uma das melhores coleções do gênero há quarenta anos, alternando autores nacionais e estrangeiros, através de um critério de qualidade que honra autores e leitores.
Assim, foi em 1960 que Dinah Silveira de Queiroz publicou o volume de contos Eles herdarão a Terra, com histórias de fantasia e de ficção científica de teor poético e ingênuo, quase um retorno à infância da autora - quando ela ouvia as histórias de Júlio Verne e de H.G. Wells. No ano seguinte, foi lançada a Antologia brasileira de ficção científica, em que Dinah aparecia entre vários autores e mais duas mulheres, Lúcia Benedetti e Zora Seljan. No outro ano, a GRD publicou Histórias do acontecerá, contando, além de Dinah e Zora, com a presença da grande Rachel de Queiroz, que, com o conto "Ma-Hôre", compôs uma pequena fábula de conquista interplanetária em que os invasores (nós, humanos) levamos um baile de um representante autóctone de pequena estatura e de grande esperteza. É uma história bem-humorada com um argumento de FC clássica e bem construída. Infelizmente, numa entrevista a um famoso apresentador de TV na ocasião do lançamento de recente romance, a escritora repudiou suas obras escritas dentro desse gênero literário, comparando-as a uma fase de imaturidade.
Outra autora de peso também participou de uma antologia de ficção científica publicada pela Editora Edart de São Paulo em 1965. Trata-se de Lygia Fagundes Telles, no livro Além do tempo e do espaço. O conto "A caçada" não é exatamente FC, embora, sem muito esforço, poderia estar à vontade entre histórias de universo alternativo. Mas nossa grande autora da época era mesmo Dinah Silveira de Queiroz. Em 1971, ela publicou um novo volume de contos, Comba Malina, pela Editora Laudes do Rio de Janeiro. É estranho que a própria autora, tão identificada com a ficção científica, se preocupasse com a conotação "científica" do gênero, preferindo o termo "literatura de antecipação", esquecendo-se de que não existe nenhuma obrigatoriedade em se antecipar ou prever alguma coisa quando se trata de ficção.

E a atualidade? Em 1991, a revista Somnium, do Clube de Leitores de Ficção Científica, teve a idéia de homenagear as autoras que faziam parte de seu quadro de associados. Assim, o número 51 conta quase que exclusivamente com o trabalho de mulheres. O editor na época, Carlos André Moraes, teve dificuldade para localizar e reunir esse material, tão escassas são suas produtoras. O resultado, modéstia à parte, é uma grata surpresa para quem curte FC. São seis contos e dois poemas, abordando diversos temas relacionados, numa visão quase sempre poética, humanista e feminina. Dois contos têm um enfoque atual e bem-humorado. A maior parte, felizmente, é bastante otimista em relação ao futuro da humanidade. É triste constatar, que entre tantos talentos (e muitos outros, provavelmente, ocultos), pouco se viu da produção posterior dessas autoras, talvez com duas exceções: Ana Creuza Zacharias, que tem uma produção constante e prolífica, aparecendo com freqüência em revistas e fanzines, e eu mesma, que já pude ter a honra de ver meu conto "O ovo do tempo" publicado numa antologia brasileira de histórias de dinossauros, Dinossauria tropicalia (editora GRD), em 1994, além de publicar o conto "Quando é preciso ser homem" na extinta Isaac Asimov Magazine, e na antologia luso-brasileira da editora Caminho, de Portugal, O Atlântico tem duas margens, de 1993. O maior problema, sem dúvida, é a escassez de mercado. Num país onde se tenta, sem muito sucesso, atingir a marca de três livros por habitante por ano (mais ou menos uma média sul-americana), um número ridículo se comparado com o primeiro mundo, pouco espaço existe para a publicação de literatura de ficção científica. Somado a um preconceito descabido em relação a esse gênero literário, e a parca visão dos editores que acreditam que só existe Arthur C. Clarke escrevendo nos dias de hoje, sobra nenhum espaço para autores de vanguarda e menos ainda para autores nacionais. Como, então, as mulheres, que já são minoria no mercado editorial brasileiro, vão encontrar espaço para publicar ficção científica? Esse é o desafio para a virada do século, nosso empenho e nossa luta. A fronteira final a ser desbravada, onde mulher brasileira alguma jamais esteve.


Finisia Fideli é escritora de ficção científica e fantasia, colaboradora da extinta revista Escrita

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