Crônicas da Província do Brasil traz o melhor da prosa do poeta de Pasárgada
por Marcelo Xavier (marcelo@rabisco.com.br)
elegada a um injusto segundo plano e em catálogo apenas em edições críticas, aos poucos a obra em prosa do poeta pernambucano Manuel Bandeira (1886-1966) começa a retornar às livrarias, no ano em que completam quarenta anos da morte do autor de Itinerário de Pasárgada. O primeiro volume é Crônicas da Província do Brasil, publicado em 1937 pela Civilização Brasileira, é relançado setenta anos após a primeira edição, pela independente Cosac Naify. À este, somam-se Guia de Ouro Preto (1938), Noções de História das Literaturas (1940), Apresentação da Poesia Brasileira (1944), Literatura Hispano-Ameericana (1949), Itinerário de Pasárgada (1954), Flauta de Papel (1957), Andorinha, Andorinha (1965) e Os Reis Vagabundos (1966) — uma produção considerável para um poeta.
A bem da verdade, os estudantes de Literatura no Ginásio amiúde ficam a se perguntar de que vivem os poetas, no caso do criador de “Pneumotórax” selecionou os textos de Crônicas da Província do Brasil na época em que era mero Inspetor do Ensino Secundário e colaborador do Diário Nacional, de São Paulo, A Província, do Recife, à época dirigido por Gilberto Freyre, e O Estado de Minas, de Belo Horizonte. Ou seja, já é uma resposta.
O livro compreende quarenta e sete crônicas onde Bandeira mistura artigo e ensaísmo, passando à limpo impressões do Rio de Janeiro do seu tempo, da rua do Curvelo, de suas viagens pelo país e um inventário de protagonistas da polêmica e histriônica Semana de 22 — do qual ele participou apenas espitritualmente, quando seu poema “Os Sapos” foi lido no Municipal.
Escrito junto com a produção poética de livros como Libertinagem e Estrela da Manhã, Bandeira experimenta em sua prosa a mesma mudança que sua concepção de poesia experimentava, de fugir da rigidez estética parnasiana para uma linguagem livre e voltada para o nosso falar coloquial. Como em sua obra poética historicamente a partir de então, Manuel é o escritor simples, acessível e sempre direto — como reza a profissão de fé da crônica à brasileira.
Embora menos conhecido como um cronista bissexto, como Vinícius de Moraes, que sempre é apontado muito mais como poeta do que como homem de jornal, o autor pernambucano é menos lido e menos citado em prosa. Como se pode ver em Crônicas da Província do Brasil, Bandeira se mostra um prosador na mesma medida de seu estro de versajador.
Um exemplo é “A Festa de Nossa Senhora da Glória do Oiteiro”, onde o poeta se revela um atento observador e um analista pertinaz, ao descer dos píncaros azulados para singrar a alma inefável dos movimentos populares. Para ele, o ritual da Glória havia descido, desde os tempos de Alencar e Machado, de um evento prestigiado pela Monarquia para se tornar eminentemente uma “festa do povo”. E comparava o Rio de sua meninice com os tempos modernos, a tradição e o progresso. E diz: “Não estava mais, como nos outros anos, as bandeirinhas e galhardetes enfeitando o Largo da Glória, nem canela cheirosa espalhada no chão. Olhei ainda uma vez para o “cômoro octógeno” dos versos detestáveis de [Araújo] Porto Alegre: a eremida luzia docemente. Não se viam as luzes, estando o templo iluminado pela projeção dos fortes focos elétricos dissimulados na amurada do adro. O efeito é muito bonito porque nada mascara as linhas ingênuas da igreja. Todavia não deixei de Ter saudades da iluminação primitiva que formava em torno da capelinha como um manto cintilante de Nossa Senhora”.
Outra pérola da visão do poeta no mundo dos ritos populares é “Candomblé”. Numa vigiliatura aos cortiços do Rio, Manuel e um grupo de amigos travaram contato com “uma mistura de bodum de negro e sangue fresco de galinha”, “eram duas palagranas de barro, uma cheia de ovos de galinha com a casca salpicada de sangue, a outra com as frangas e os pombos sacrificados. O preto trabalhava com vagar, estava visivelmente fatigado. Comandava com autoridade bonachona, mas forme. Despejou dendé em cima de tudo. Em seguida, tirou do santuário uma grande palma de rosas amarelas e com uma faca de ponta ia cortando cerce cada flor, que colocava nas palangranas, cobrindo o manjar de Ogum”.
Em suas crônicas, Bandeira ainda vai da crítica de cinema (“O Heroísmo de Carlito”) onde o escritor observa os paradoxos do vagabundo interpretado por Chaplin, calças lambazonas para contrastar com o ar tristemente aristocrático da cartolinha: “agrada por não sei quê de elegante que há no seu ridículo de miséria”, diz. “Pode-se dizer que Carlito possui o dandismo do grotesco. Em “Leituras de Mocinhas”, o autor de Estrela da Vida Inteira passa a vista sob o gosto das jovens leitoras que lhe mandam cartas e comenta a preferência dos autores preferidos de seus leitores. Mas certamente o mais interessante do livro reside no conteúdo autobiográfico do poeta, como em “Fragmentos”, “Os que Marcam Rendez-Vous com a morte (onde ele comenta sobre morte repentina, sobre conhecidos seus que partiram sem dizer adeus ou, quase, fazendo isso de forma quase inconsciente).
Creio porém que o trecho mais interessante (e igualmente clássico) é “O Enterro de Sinhô” não apenas pela sua descrição quase jornalística da morte de J. B da Silva (1888-1930), um dos patriarcas e figura de proa dos primeiros anos do samba carioca, mas também pelo forte conteúdo histórico das cenas descritas e das impressões de Bandeira sobre aquele que foi conhecido como o “Rei do Samba”. “Diziam que tinha sífilis. Certamente o rim estava em pantanas. Fígado escangalhado (...) O que há de mais povo, de mais carioca, tinha em Sinhô a sua personificação mais típica, mais genuína e mais profunda. De quando em quando, no meio de toadas, que todas eram camaradas e frescas como as manhã dos nossos suburbiozinhos humildes, vinha de Sinhô um samba definitivo, um “Jura”, com “um beijo puro na catedral do amor”, enfim, uma das coisas incríveis que pareciam descer dos morros lendários da cidade, Favela, salgueiro, Mangueira, São Carlos, fina flor extrema da malandragem carioca mais inteligente e mais heróica”.
Tão suburbano quanto a vida e a obra de Sinhô, devia ser o seu ministério secular e a sua morte. Manuel observa que ele devia faltar a algum sarau para beber até cair na calçada: “tinha que morrer como morreu, para que a sua morte fosse o que ele foi: um episódio de rua, como um desastre de automóvel. Vinha numa barca da Ilha do Governador para a cidade, teve uma hemoptise fulminante e acabou”. Mais pitoresco foi foi o seu velório, em pleno Mangue: “a capelinha branca era muito exígua para conter todos quantos queriam bem a Sinhô, tudo gente simples: soldados, meretrizes, chauffeurs, macumbeiros (...), todos os sambistas de fama, os pretinhos dos choros dos botequinhos das ruas Júlio do Carmo e Benedito Hipólito, mulheres dos morros, baianas de tabuleiro, vendedores de modinhas (...) não tem ali ninguém para quebrar aquele quadro de costumes cariocas, seguramente o mais genuíno que se viu na cidade”.
Outra crônica, “Sambistas”, além de complementar a biografia de Sinhô e a sua relação com a fina flor da intelectualidade carioca (ele fazia serestas para amigos de Bandeira, o também poeta, Álvaro Moreyra e sua mulher, Eugênia, além de ser o compositor de sambas cantados por Mário Reis, por exemplo) quanto à natureza popular de sua criação musical. E Sinhô evocava e personificava esse mesmo autêntico espírito popular, “que vive de brisa e cura a tosse com álcool e desgraça pouca e bobagem”. Sinhô, por sua vez, sempre que aparecia para um sarau e começava a tossir (devido à tuberculose que o mataria), curava o acesso com “uma boa lambada de Madeira (...) e a tosse passava”. Um dia, ele apareceu um samba cujo estrebilho era “Já é demais, meu bem, já e demais! Eu notei que tu queres me acabar”.
Bandeira conta que o sambista entoou a música um sem número de vezes, e o fato é que os versos não lhe fugiram mais da lembrança — até que, pesquisando sobre literatura de cordel, o poeta encontrou um caderno com o título “Já é Demais”. Lá estava o “Já é demais, meu bem, já e demais! Eu notei que tu queres me acabar” do “Rei do Samba”, creditados a um certo Seu Candu. Porém, o plágio não seria deste, já que a música fora registrada como marcha no Carnaval de 1925, inclusive com alusões à época. Conclusão: Sinhô havia plagiado (cabe ressaltar que Sinhô tinha essa fama, tanto que Heitor dos Prazeres o chamava ardilosamente de Rei dos Meus Sambas”) um tema também antes copiado. Ou seja, não havia uma autoria definida — e o espírito era esse.
— Isso só me fez refletir como é difícil apurar afinal de contas a autoridade desses sambas cariocas, que brotam não se sabe donde. (...) Possivelmente atrás de Seu Candu estará o que não deixou vestígio de nome no samba que toda a cidade vai cantar”, explica.
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