Lembro que mal pude abrir a boca diante de um Orico impaciente, de costas para mim na ampla sala do apartamento de Ipanema, cercado por dois criados que lhe faziam a barba e aparavam os cabelos, enquanto me ditava às pressas um depoimento solene e cheio de detalhes dispensáveis ao assunto que me interessava.
Com Sérgio Buarque de Holanda foi diferente. "Não escreva nada, rapaz" - foi me dizendo assim que abri a pasta de cartolina preta que ficara em cima da mesinha diante do sofá ao pé da escada onde ele estava sentado quando entrei conduzido por dona Maria Amélia, sempre simpática e atenciosa. "Não vale a pena escrever nada agora, eu ando muito esquecido de tudo... Vamos conversando e eu vou falando do que me lembrar...".
Estava escurecendo, Sérgio usava camisa clara e vestia calças largas de algodão, de cujos bolsos ia tirando, à medida que falava, cigarros Gauloise sem filtro, que acendia um na ponta do outro, sem precisar recorrer aos fósforos. "Do Graça Aranha eu não vou falar, porque esse não foi modernista" - me disse de repente e sem imaginar que com isso liquidava de vez com o meu plano de trabalho timidamente escorado numa série de perguntas que eu levara semanas organizando. E agora?, pensei comigo. Afinal, eu estava diante de uma das maiores figuras do modernismo, um homem que tinha convivido com Mário de Andrade, com Oswald, com Alcântara Machado, com Raul Bopp, que fora amigo de Manuel Bandeira, que "sabia tudo" sobre o movimento, mas que preferia ficar nas impressões circunstanciais, despretensioso e simples, sem qualquer intenção de parecer importante ou pousar de celebridade diante de um jovem bolsista acossado pelos deveres acadêmicos e preocupado com os relatórios de pesquisa.
Em dez minutos a conversa perdeu o rumo e a coisa ferveu. Foram tantos os retratos, as revelações e as anedotas que ainda hoje, quase vinte e seis anos depois, me surpreendo articulando-os num relatório que jamais poderá ser concluído. Por curiosa ironia, um dos relatos que me ficaram daquela tarde pouco ou quase nada tinha a ver com a tese que eu então escrevia. Ocorreu, segundo Sérgio Buarque de Holanda, logo depois da Semana, ali por volta de fins de maio ou começo de junho de 1922, quando Mário e Oswald de Andrade decidiram enviá-lo para o Rio de Janeiro como representante da revista Klaxon. Sérgio me disse que partiu achando engraçada aquela idéia meio sem pé nem cabeça de ir vender no Rio a poesia feita em São Paulo por um grupo de rapazes que até então ninguém conhecia. Logo ele - pensei depois ao sair - que, na evocação de Rodri-go Melo Franco de Andrade, vivia caçando parnasianos pelos bares do Rio em busca de provocações elevadas em tom de piada disfarçada na sisudez do monóculo e naquele talento imenso para fazer gozação...
Pois deu-se o fato de que, numa de suas primeiras incursões pelo Rio de Janeiro, Sérgio acabou batendo na livraria Schettino com um maço de exemplares da Klaxon debaixo do braço. Manhã bem cedo, a livraria ainda fechada, eis que lhe veio abrir a porta um mulato maldormido e estremunhado que foi logo amaldi-çoando a luz do sol e a chegada do primeiro cliente. Era Lima Barreto em pessoa. Como passasse uma temporada largado na rua, o livreiro Schettino o abrigava ali entre os livros, acomodando-o num pequeno estrado atrás do balcão principal.
Do que os dois conversaram não ficou qualquer registro, a não ser uma alusão de passagem numa crônica do próprio Lima Barreto sobre os futu-ristas de São Paulo e umas poucas conjecturas que ouvi muitos anos depois em Campinas do crítico Francisco de Assis Barbosa, grande biógrafo de Lima Barreto. "O Mário e o Oswald de Andrade queriam o Rio de Janeiro no modernismo e, dentro dele - dizia Sérgio -, a arte irreverente de Lima Barreto, por quem tinham a maior simpatia, a ponto de Mário afirmar depois num ensaio que existia mais Rio de Janeiro nos romances de Lima Barreto do que em toda a obra de Machado de Assis."
Fiquei sabendo naquela noite que mesmo sem querer nada com a Klaxon, Lima Barreto perguntou a Sérgio Buarque de Holanda quem era e o que fazia o moço Mário de An-drade, de quem ouvira falar em conversa com Monteiro Lobato e com Jaime Adour da Câmara, o jovem modernista de Natal que viria juntar-se mais tarde ao grupo oswaldiano da Antropofagia. Queria saber se era verdade mesmo que Mário sabia muito de música e de folclore, pois estava então interessado em aprofundar o tema noutras personagens inspiradas no violeiro Ricardo Coração dos Outros, o companheiro do major Quaresma.
Mas Sérgio queria atraí-lo para a Klaxon e decidiu prolongar a conversa. Quando deu por si, descia a avenida ao lado do escritor, já então cercado pelos amigos, que desde cedo o esperavam lá fora, gente de vida errada que, como ele, se acamaradava nas ruas, bebendo cachaça nos bares das redondezas. Percebeu no entanto que já era tarde, que o Lima Barreto das ruas era um tipo completamente estranho àquele sujeito tímido com quem conversara na livraria. Foi esse segundo Lima, o do sarcasmo e das piadas, que lhe disse ali, para a gargalhada geral, que Verlaine era um poeta genial "porque bebia como uma cabra". Sérgio imitava os gestos do Lima e a coisa ficava ainda mais engraçada.
Mas de pouco valeu a deixa para tentar atraí-lo. Nem mesmo quando Sérgio lhe sugeriu que fossem juntos a São Paulo, pelo trem noturno. "Que diabo!" - insistia -, pegariam o Mário de surpresa, teriam o tempo todo para conversar sobre o que quisessem, passar na redação da Klaxon e ir juntos depois para a confeitaria Vienense, onde o Lima ficaria conhecendo o resto da turma. O olhar cansado de um homem que parecia doente fez ver que não, que as pernas, inchadas, já não podiam chegar tão longe, que a demência do pai não lhe permitia uma outra saída para tão longe, já bastava - dizia o Lima - a saída de dois anos antes, quando estivera em Mirassol a convite de Ranulfo Prata.
Despediram-se na estação do subúrbio. Lima Barreto ainda acenou com o chapéu e o carro partiu. Nunca mais se viram. Sérgio voltou a São Paulo com muitas sobras da Klaxon. A 7 de julho de 1922, com um artigo na revista Careta, Lima Barreto manifestou de público a sua opinião sobre a revista, desdenhando muito da capacidade dos futuristas da Semana, que para ele não traziam nada de novo. Houve reações em São Paulo, os modernistas responderam no mesmo tom, sugerindo a Lima Barreto que lesse Cendrars, Epstein e Apollinaire, e que sobretudo esquecesse Marinetti ("... o que temos com o italiano, oh! fino classificador?").
Quatro meses depois, numa pequena coluna de O Jornal, veio a notícia da morte de Lima Barreto em sua casa de Todos os Santos, no Rio. Sérgio nunca mais voltaria ao assunto, nem mesmo quando, em meados dos anos de 1950, Francisco de Assis Barbosa lhe pediu o célebre prefácio que até hoje acompanha um dos volumes que compõem a série da obra completa de Lima Barreto, publicada justamente em São Paulo.
Antonio Arnoni Prado é professor de teoria literária na Unicamp, autor - entre outros - dos ensaios Lima Barreto: O crítico e a crise e 1922: Itinerário de uma falsa vanguarda; é organizador de O espírito e a letra (Companhia das Letras), reunindo a crítica literária de Sérgio Buarque de Holanda
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