A questão de saber se a metafísica deva ou não ser considerada como exausta e morta, escapa, sem dúvida, se não completamente ao programa, pelo menos aos limites desta pequena folha.
Pedimos, todavia, respeitosamente, ao público a permissão de apresentá-la ao círculo de nossos leitores e contribuir com algum esforço para a sua solução.
Antes de mais nada, merece reparo como os espíritos em nosso país se portam no que diz respeito a semelhante indagação. O que melhor e mais acertado se pode afirmar no assunto é que o ponto de vista filosófico do nosso pretenso mundo científico é caduco e sem o mínimo préstimo. Não resta a mais leve dúvida que até as estrelas de primeira grandeza, os mais afamados pensadores e escritores da terra se distinguem pela sua fé implícita no velho Deus da teologia e da Igreja. Nada sabem de sério do desenvolvimento da vida intelectual do tempo presente e ousam falar de tudo, de filosofia, de religião, de ciência, e do que falam fazem grande alarde.
Uma coisa, porém, urge observar e é que com essa enorme ignorância correm emparelhados o orgulho e o desprezo pelos mais notáveis feitos científicos estrangeiros, notadamente alemães.
É isto suficiente para caracterizar, de um lado a deplorável condição em que nos achamos, e por outro, justificar o interesse que tomamos em responder à pergunta proposta. Se em nossos dias nenhum homem verdadeiramente culto deve ignorar que o dogmatismo da metafísica moderna foi abalado por Hume, cuja implacável crítica coube a Kant concluir em mais largas proporções e com mais considerável profundeza, há de causar admiração e grande espanto que tão triviais verdades ainda despertam entre nós.
Certo, antes que Augusto Comte, o fundador do positivismo na França, expelisse o absoluto para a região das quimeras, já Hume havia derrocado o edifício metafísico (... ) Foi, em verdade, a dúvida do genial filósofo escocês acerca da validade dos juízos sintéticos em geral, que veio a se tornar o estímulo e a fonte das profundas pesquisas de Kant; e este mesmo declarara, sem rebuço, que a crítica de Hume é que primeiro o despertara de seu sono dogmático. São, com efeito, profundamente penetrantes as fortes palavras, como que talhadas em mármore, com que o terrível céptico inglês fechou seu Ensaio sobre o Espírito Humano. Ele diz: - "Quando, convictos da doutrina aqui ensinada, penetramos numa biblioteca, que destruição devemos causar? Tomemos um livro de teologia ou de metafísica e perguntemos: contém investigações sobre grandezas e números? Não. Contém o resultado de experiências acerca de fatos e realidades existentes? Não. Jogue-se então o livro ao fogo, porque não poderá conter nada além de sofisticarias e mistificações". - Profunda e belamente dito.
Desde o momento em que semelhantes verdades foram impunemente pronunciadas, a metafísica deixou de poder ser considerada como pertencente ao grupo das ciências, quer quando fala do supersensível ou da essência das coisas, quer quando se pronuncia racionalmente sobre a substância da alma, a origem do mundo, a existência e os atributos da Divindade.
Toda a filosofia até o aparecimento de Kant, como ensina Schopenhauer, não passou de um sonho estéril de falsidade e servilismo intelectual, do qual os novos tempos só se libertaram pelo grado partido da Crítica da Razão Pura.
E cremos não estar em erro, proferindo a crença de que não teria Kant atingido o seu desenvolvimento, se não fora o influxo de Hume.
Distinguem-se no período pré-crítico do sistema kantesco dois estádios: no primeiro, esteve o grande filósofo sob o influxo da filosofia escolástica alemã; no segundo, sob a influência céptica. Foram principalmente Wolf, Locke e Hume que indicaram os marcos capitais por onde Kant teve de passar antes de descobrir os seus próprios.
Destarte, se reuniram nele todas as energias e esforços de seus predecessores. A parte de Hume tinha de ser a mais considerável e duradoura. Somente depois do genial escocês poderia vir um Kant: a estrada estava aberta, mas só ele a poderia verdadeiramente alargar.
II
A máxima de que as investigações metafísicas são estéreis em resultados e de que é perda completa de tempo ocupar o espírito com elas, está em favor entre numerosas pessoas que se gabam de possuir o senso comum, e nós ouvimo-la às vezes enunciar por autoridades eminentes, como se sua conseqüência lógica, a supressão desse gênero de estudos, tivesse a força de uma obrigação moral.
Neste caso, contudo, com noutros análogos, aqueles que promulgam as leis parecem esquecer que um legislador prudente deve tomar em consideração não só se o que ordena é coisa que se deva desejar, como ainda se é possível que se lhe obedeça. Porquanto, se a última questão é resolvida negativamente, não valeria certamente a pena agitar a primeira.
Tal é, efetivamente, a grande força da resposta a dar a todos aqueles que bem quiseram fazer da metafísica um artigo de puro contrabando espiritual. Que seja para desejar, ou não, o impor um direito proibitivo sobre as especulações filosóficas, é absolutamente impossível impedir-lhes a importação no espírito humano. E é assaz curioso notar que aqueles que proclamam com maiores brados abster-se dessas mercadorias são, ao mesmo tempo e em grande escala, consumidores inconscientes de uma ou de outra de suas inúmeras falsificações ou imitações e arremedos. Com a boca cheia de broa grosseira, terrivelmente indigesta, tão de seu gosto, prorrompem em invectivas contra o pão comum. Em verdade, o tentame de alimentar a inteligência humana com um regime estreme de metafísica é pouco mais ou menos tão feliz quanto o de certos pios orientais que pretendiam sustentar o corpo sem destruir vida alguma. Todos conhecem a anedota do micrógrafo sem contemplação que destruiu a paz de espírito de um desses doces fanáticos, mostrando-lhe os animais que pululam numa gota de água com a qual, na cândida inocência de sua alma, ele matava a sede; e o adorador confiante do senso comum pode expor-se a receber um abalo do mesmo gênero quando o vidro de aumento da lógica rigorosa revela os germes, se não as formas já adultas, de postulados essencialmente, fatalmente metafísicos que fervilham entre as idéias mais positivas e até as mais terra-a-terra.
Aconselha-se aí de ordinário ao estudante sério, para o arrancar aos fogos fátuos que brotam dos pântanos da literatura e da teologia, que se refugie no terreno firme das ciências físicas.
Mas o peixe legendário que pulou da frigideira ao fogo, não era mais tolamente aconselhado do que o homem que busca um santuário contra a perseguição metafísica entre as paredes do observatório ou do laboratório. Diz-se que a metafísica deve seu nome ao fato de que, nas obras de Aristóteles, tratam-se das questões da filosofia pura imediatamente depois das da física. Se isto é verdade, esta coincidência simboliza com felicidade as relações essenciais das coisas, porquanto a especulação metafísica segue de tão perto a teoria física quanto os negros cuidados seguem seu cavaleiro.
Basta mencionar as concepções fundamentais e realmente indispensáveis da filosofia natural que tratam dos átomos e das forças, ou as da energia potencial, ou as antinomias de uma vácuo ou não vácuo, para lembrar o fundo metafísico da física e da química, ao passo que, no tocante às ciências biológicas, o caso ainda é mais grave. Que é um indivíduo entre as plantas e os animais inferiores? Os gêneros e as espécies são realidades ou abstrações? Há uma coisa que se chama força vital? Ou este nome denota apenas uma relíquia de velho fetichismo metafísico? A teoria das causas finais é legítima ou ilegítimas? Eis aí alguns dos assuntos metafísicos sugeridos pelo mais elementar estudo dos fatos biológicos.
Não é tudo: pode-se dizer, sem medo de errar, que as raízes de cada sistema de metafísica repousam no fundo dos fatos da fisiologia. Ninguém pode contestar que os órgãos e as funções da sensação sejam tanto da esfera do fisiologista quanto o são os órgãos e funções do movimento, ou os da digestão; e, todavia, é impossível adquirir até o conhecimento dos rudimentos da fisiologia da sensação sem ser levado diretamente a um dos mais fundamentais de todos os problemas metafísicos. Com efeito, as operações sensitivas têm sido desde tempos imemoriais o campo de batalha dos filósofos.
(Ensaios e Estudos de Filosofia e Crítica - 1875)
Tobias Barreto de Meneses nasceu na vila sergipana de Campos, a 7 de junho de 1839 e faleceu em Recife, em 27 de junho de 1889, sendo filho de Pedro Barreto de Meneses, escrivão de órfãos e ausentas da localidade. É o patrono da Cadeira nº 38 da Academia Brasileira de Letras.
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