Nas décadas de cinqüenta e sessenta, o boom da literatura latino-americana não teria ocorrido ou, pelo menos, teria sido bem menor sem a participação de Gabriel García Márquez. A Europa geralmente manteve uma atitude de curiosidade em relação ao que vem de fora, ao que vem do que os europeus chamam de países exóticos, dentre os quais nós, sul-americanos, estaríamos incluídos. Somos o recreio divertido deles quando se cansam de tanta civilização. Mas deixando de lado as razões porque, vez por outra, lançam-nos olhares curiosos, atenhamo-nos ao fato de que naquelas décadas a Europa traduziu, leu, chegou a sentir certo fascínio pela literatura do lado de cá do oceano, sobretudo dos países de fala espanhola.
No afã de nos entenderem, reduziram-nos para que coubéssemos em algumas poucas definições. É assim que tem sido com todas as tentativas de se capturar o mundo em uma gaiola de palavras. E talvez não possa ser diferente. Então surgiram por lá, com reflexos por aqui, as classificações que, no caso de García Márquez, transitaram quase sempre entre o "realismo mágico" e o "realismo fantástico", podendo-se ainda acrescentar o "absurdo", como tratamento dado pelo autor a sua matéria narrativa. Para que se evitem generalidades, em que quase sempre tudo cabe, é preciso que se estabeleça com um mínimo de precisão o significado que tais expressões tomam aqui.
O "realismo mágico", como designação de certo tipo de literatura, segundo a professora Dra. Selma Calasans Rodrigues, deve ser abandonado, pois "A literatura pode usar uma causalidade mágica que se opõe à explicação oferecida pela lógica científica, mas ela não é mágica.".
Propõe-se, então, como caracterização de boa parte da produção literária de GM, a expressão "realismo fantástico". E essa expressão abrangeria toda literatura em que realidade e fantasia se misturam. Para maior clareza, pode-se dizer que tem o caráter de fantástica toda ação que represente alguma ruptura com as leis naturais e que só nossa imaginação pode conceber. Nesse sentido, a classificação de GM está correta, uma vez que parte de seus romances, como é o caso de Cem anos de solidão, operam em tal espaço.
"... teve um filho que passou toda a vida de calças larguíssimas e frouxas e que morreu de hemorragia depois de ter vivido quarenta e dois anos no mais puro estado de virgindade, porque nascera com uma cauda cartilaginosa em forma de saca-rolhas e com uma escova de pêlos na ponta."
Subir ao céu carregada por lençóis, façanha de Remedios, nesse mesmo romance, contraria a lei da gravidade. Outro exemplo de atuação fantástica é o do homem que chega do céu batendo suas grandes asas e instala-se em um galinheiro.
Em Hoffmann, o que encontramos é o fantástico do tipo "questionado", ou seja, personagem e leitor hesitam entre aceitar o fato como produto de um sonho, de uma ilusão, ou aceitá-lo como realidade misteriosa para a qual buscam alguma explicação.
"No texto de García Márquez não há explicação: os atores se encontram integrados num universo de ficção total onde o verossímil se assimila ao inverossímil numa completa coerência narrativa, criando o que se poderia chamar de uma verossimilhança interna".
Mas se realidade e fantasia coexistem em Cem anos de solidão, e fantasia, aqui, tomado o termo como ruptura com as leis naturais, o mesmo não ocorre com seu esboço, como alguns críticos se referem ao romance Ninguém escreve ao coronel, que o antecede, apresentando algumas das personagens que aparecerão na obra que celebrizou o autor. As situações vividas no primeiro são todas situações corriqueiras, possíveis dentro de uma ordem natural e segundo nossa visão cartesiana do mundo. Não podemos, portanto, classificar a obra do autor apenas como "realista fantástica" sem incorrer em erro de simplificação/redução.
Houvesse, contudo, somente essas duas fontes da literatura de GM, não seria assim tão complicado classificá-lo, mas há obras suas que operam em outra faixa de visão do mundo, que provêm de outras correntes. É o caso, por exemplo, de A incrível e triste história da cândida Erêndira e sua avó desalmada. De um ponto de vista meramente científico, não é impossível aquela fila quilométrica de homens que pretendem praticar sexo com a cândida Erêndira, engordando a burra de sua avó desalmada. Isso é cientificamente possível, mas se trata de um absurdo, operando-se agora o ingresso em outro terreno, o das ações cientificamente possíveis, mas que ferem intensamente, isto é, que rompem de maneira drástica com os costumes.
Não é inútil, a esta altura, fazermos um bosquejo do fantástico e do absurdo no Brasil, sem a pretensão de um levantamento exa-ustivo do assunto, mas apenas como ilustração do que se tem afirmado.
Após o declínio do Realismo entre nós, albores do século 20, um dos grupos que liderou o Modernismo brasileiro propunha o primitivo como raiz cultural de nosso povo.
Erro de português
Quando o português chegou
Debaixo duma bruta chuva
Vestiu o índio
Que pena!
Fosse uma manhã de sol
O índio tinha despido
O português
(...)
No outro dia Macunaíma depois de brincar cedinho com a linda Iriqui, saiu pra dar uma voltinha. Atravessou o reino encantado da Pedra Bonita em Pernambuco e quando estava chegando na cidade de Santarém topou com uma viada parida". 5
Depois dessa incursão pelo fantástico, assistimos ao surgimento do neo-realismo da segunda geração do Modernismo brasileiro, com o romance de denúncia social, sobretudo de origem nordestina. Não há, neste período, nada a destacar.
Antonio Candido, citando Fausto, afirma em determinado momento que "...tudo é tecido num conjunto, cada coisa vive e atua sobre a outra." 6 Dando-se a afirmação como verdadeira, isto é, nada existe que não exerça influências no todo ou que não sofra influências dele, não é descabida a afirmação de que García Márquez tenha deixado suas marcas entre nós. Partindo-se do princípio de que tudo o que lemos nos afeta, pois somos o resultado de todas as nossas experiências, não podemos negar que alguma influência o Gabo terá exercido sobre a literatura brasileira, lido e admirado que foi a partir da década de 1960. Uma influência difusa e que tão-somente mostrava como possíveis alguns caminhos, um modo de afetar sem propriamente aliciar. Sua Aracataca transfigura-se naquela Macondo de seus livros, esquecida da civilização. Que ele tenha deixado marcas em todos nós, isso é indiscutível. Mas há elementos distintivos entre a sociedade brasileira e a colombiana que, aliados a histórias literárias também distintas nos dois países, inviabilizaram o surgimento de epígonos de GM entre nós, como ele tem em outros países sul-americanos.
Por circunstâncias biográficas, só tive acesso à obra de Gabriel García Márquez no início da década de 1970, quando a antiga Editora Sabiá lançou a 11a edição de Cem anos de solidão. A leitura desse romance causou-me impacto pela linguagem repleta de humor e poesia, mas principalmente pelo mundo que descortinava, um mundo que em tudo parecia parado no tempo, fora da corrida vertiginosa que bem conhecemos no encalço da modernidade. Ambos, linguagem e ambiente, produziram aquele encantamento, que é o primeiro objetivo da literatura. A seguir vieram os outros, como Ninguém escreve ao coronel, Os funerais da mamãe grande, Olhos de cão azul, O outono do patriarca, O amor nos tempos do cólera e muitos outros, todos eles confirmando a impressão inicial: trata-se de um dos maiores escritores sul-americanos.
Nem por me sentir encantado com sua prosa ágil e seu mundo nebuloso, jamais senti o menor desejo de erigi-lo em modelo, tantas e tais são nossas diferenças de meio e propósitos.
Menalton Braff é romancista e contista, autor de Na teia do sol (Ed. Planeta) e Como peixe no aquário (Ed. S.M.)
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