Na década de 80, a ficção portuguesa viu surgir uma constelação de autores que deram continuidade à vocação experimental e à exploração dos limites da escrita romanesca, mas acabou por gerar um clima de euforia e complacência contrário ao caráter autocrítico desse gênero literário, que assim foi diluído na proliferação indiscriminada de romances
Abel Barros Baptista
Num depoimento recente sobre a própria obra e a ficção portuguesa contemporânea, a romancista portuguesa Lídia Jorge, reportando-se ao ano em que publicou o primeiro livro, 1980, afirmava que "será uma falta imperdoável não reconhecer que, a partir desse período, se começou a falar em termos respeitosos do romance português, em questão de quantidade, diversidade, bem como em originalidade". Foi esse, de facto, um período crucial para a literatura portuguesa, de que a publicação em 1982 do Livro do desassossego - esse "texto supremo da nossa literatura deste século, aquele que instalado no coração da própria ficção a torna luminosamente supérflua", para usar palavras de Eduardo Lourenço - ficará provavelmente como o marco simbólico decisivo. E mesmo quem não partilhe o optimismo de Lídia Jorge deverá reconhecer que durante a década de 80 a ficção portuguesa conheceu um surto invulgar. No entanto, não exagero se disser que todo o problema da avaliação da condição actual da literatura portuguesa passa pelo esclarecimento quer do sentido quer das conseqüências dos tais "termos respeitosos": porque é indesmentível que durante a década de 80 "se começou a falar em termos respeitosos do romance português" e, sobretudo, que se sublinhou, se ostentou e se reafirmou que "se começou a falar em termos respeitosos do romance português". Num certo sentido, a ficção portuguesa viveu por essa altura um período de "felicidade", de que conviria talvez sublinhar os aspectos principais.
Em primeiro lugar, alguns dos escritores que definiram a ficção portuguesa no começo da segunda metade do século, e que se estrearam nos anos 40 e 50, publicaram livros que representaram um relançamento ou um novo fôlego da sua obra, fosse por iniciarem uma nova fase, ou por interromperem um silêncio longo, ou fosse ainda por terem conseguido chamar a si a atenção de que até então não dispunham: foi o caso de Vergílio Ferreira ( Para sempre, 1983), de Agustina Bessa-Luís ( Os meninos de oiro, 1983), de José Cardoso Pires ( Balada da Praia dos Cães, 1982), de Augusto Abelaira ( O bosque harmonioso, 1982), talvez mesmo de Fernando Namora ( O Rio Triste, 1982), mas ainda o de Fernanda Botelho ( Esta noite sonhei com Brueghel, 1987, depois de um silêncio de quinze anos). Por outro lado, escritores cujo trabalho se iniciou nos anos 60 publicaram obras decisivas, prolongando a vocação experimental do romance e a exploração dos limites da escrita romanesca. É o caso de Maria Velho da Costa, que depois de um romance que já a tornara autora da ficção mais problemática dos últimos vinte anos, Maina Mendes, de 1969, e depois de Casas pardas, de 1977, publica em 1983 Lucialima e sobretudo Missa in albis, um dos romances centrais da década, que aparece em 1988. E é o caso também de Maria Gabriela Llansol, que se estreara com uma colectânea de contos, Os pregos na erva, em 1963, mas apenas se tornaria conhecida durante a década de 80, assinando a que será a mais radical experiência de exploração dos limites do romanesco durante esse período: Causa amante (1984), Um falcão no punho (1985) ou Contos do mal errante (1986) confirmam o que já se anunciara no Livro das comunidades, de 1977.
Todos os nomes mencionados estão ligados, de uma forma ou de outra, à grande viragem que se operou na ficção portuguesa entre os princípios dos anos 50 e os finais dos anos 60: digamos, entre o aparecimento de A Sibila, de Agustina, e Maina Mendes, de Maria Velho da Costa. A sobrevivência de quase todos, o ressurgimento de alguns, a renovação de muitos ou a afirmação definitiva de outros, tudo isso, enfim, mostra à evidência a impossibilidade de avaliar esse brilhante período da nossa literatura com recurso à noção de "geração": trata-se antes de uma constelação de escritores que definiu a situação em que a nossa ficção se encontraria no 25 de Abril de 1974 e que viria a definir a ficção posterior ao 25 de Abril de 1974, mantendo-se ainda activa durante todo um período de quinze ou vinte anos. E até se poderia dizer que se permaneceu intacta, não fosse o relevo de algumas das baixas: a década de 80 conheceu o silêncio de uma grande contista, Maria Judite de Carvalho, e os últimos livros significativos de um escritor precocemente consagrado, Almeida Faria, mas sobretudo não pode contar com algumas figuras entretanto desaparecidas, como Ruben A. (em 1975), Jorge de Sena (em 1978), Carlos de Oliveira (em 1981) e Nuno Bragança (em 1985).
Os "termos respeitosos" a que se referia Lídia Jorge, entretanto, devem pouco a uma imagem de continuidade: o que então se dizia, e os factos pareciam atestar, é que essa constelação de escritores que vinha de antes do 25 de Abril foi capaz de conviver pacificamente e até de dialogar com uma nova constelação, cujas estrelas despontavam todos os dias, a ponto de não ser já possível distinguir uma da outra. Nem todas as estrelas eram novas, é certo, mas algumas - coisa inédita - eram efectivamente estrelas e alcançaram um sucesso internacional nunca visto em Portugal. Foi em 1980 que se publicou Conhecimento do Inferno, o terceiro romance de António Lobo Antunes (os dois primeiros saíram ambos em 1979, e até ao fim da década o romancista publicaria ainda mais quatro romances), talvez aquele, entre os novos escritores, que mais notoriamente adoptou uma atitude de irreverência contra a instituição literária estabelecida, posto inarticulada com a novidade dos seus romances. Mas a década de 80 conhece sobretudo o estranho caso de José Saramago, que aos sessenta anos inicia uma segunda carreira literária, que, como se sabe, chegaria ao Nobel: publica o seu primeiro êxito intra muros, Levantado do chão, em 1980, enquanto o célebre Memorial do convento data de 1982 (são ainda dos anos 80 livros como O ano da morte de Ricardo Reis, 1984, Jangada de pedra, 1986, e História do cerco de Lisboa, 1989, que completam a primeira fase caracteristicamente saramaguiana).
É ainda nesta década que se estreiam em livro dois dos escritores mais originais entre a geração dos quarenta anos: Mário de Carvalho e Luísa Costa Gomes - e a importância destes dois nomes na resistência à corrente dominante da ficção portuguesa ainda está por avaliar -, como é nesta época que aparecem Lídia Jorge, Hélia Correia, Teolinda Gersão, Clara Pinto Correia, João de Melo, Teresa Veiga ou Paulo Castilho. Além disso, e atestando o enorme prestígio que o romance assumiu, alguns poetas tentaram pela primeira vez a ficção ou afirmaram-se mesmo definitivamente como romancistas: Vasco Graça Moura, Manuel Alegre, Mário Cláudio, Al Berto, João Miguel Fernandes Jorge. Neste grupo, merece menção separada David Mourão-Ferreira, que embora tenha publicado em 1986 o seu primeiro e único romance, Um amor feliz, dera à literatura portuguesa contemporânea duas obras-primas da ficção: Gaivotas em terra, novelas, de 1959, e Os amantes e Outros contos, de 1968.
Outros elementos importantes completam este quadro: a Associação Portuguesa de Escritores instituiu o Grande Prémio de Romance e Novela - atribuído pela primeira vez a José Cardoso Pires em 1983 -, que passou a funcionar como principal instância crítica, concentrando polémicas e catalisando crispações; os editores portugueses começaram a procurar os autores portugueses, foi mais fácil publicar o primeiro livro, alguns autores puderam encarar a profissionalização; o leitor português, por seu lado, descobriu maravilhado que havia escritores portugueses, surgiram vários enormes sucessos de livraria, a beneficiar tanto escritores consagrados como estreantes ignorados do grande público.
Perante tudo isto, dizer que a década presente, e que quase acaba, perde no confronto, é dizer muito pouco. A verdade é que não tem existência autónoma do ponto de vista da ficção romanesca: quando muito mera continuação da anterior, não conheceu novidade de monta nem revelou nenhum grande escritor. E no entanto, os "termos respeitosos", se não desapareceram, rarearam, perderam intensidade, e na atmosfera do mundo literário dissipou-se aquela nota de euforia que indicava o período de "felicidade". Apenas a persistência e até alargamento do sucesso de José Saramago, culminando com a atribuição do Nobel no ano passado, rompeu com esse clima de refluxo, ou mais precisamente mascarou-o: a pressa com que muitas vozes reclamaram que este também era um Nobel para a literatura portuguesa denunciava, além do óbvio lugar-comum de orgulho nacionalista, o esforço para transformar a vitória de Saramago no resultado de um vasto e nacional movimento de renovação e afirmação da literatura portuguesa, de que Saramago seria apenas a cabeça visível, quer dizer, internacionalmente visível.
Não interessa muito, suponho, afirmar que esse movimento não existe, como não adianta insistir na lógica dessa nova "literatura internacional" que impede que Saramago tenha chegado ao Nobel enquanto representante da literatura portuguesa. O que importa desarticular é justamente a ilusão presente nos "termos respeitosos" de que falava Lídia Jorge: de facto, durante toda a década de 80, eles surgiram a suprir outros termos, os críticos, permitindo que a euforia substituísse o debate e a complacência expulsasse a análise. Não essencialmente porque a maioria dos romances então publicados fosse medíocre quando muitos os supunham obras-primas: apenas aconteceu que essa década de "felicidade" foi também a década da capitulação da crítica - e não falo da crítica como actividade delimitada da instituição literária, mas sobretudo enquanto dimensão inerente à criação literária e por isso envolvendo tanto os leitores e os críticos como os próprios escritores. Se é hoje visível que, na sua maioria, os novos romancistas revelados na década de 80 não são escritores críticos - mostram uma pobre capacidade para pensar o próprio trabalho e uma enorme dificuldade para equacionar a relação dele com a tradição literária e com a noção de literatura, as mais das vezes superando os embaraços com uma celebração inocente da ficção e com uma reiteração enfadonha de lugares-comuns -, é também certo que a crítica não afinou o seu discurso pelas novas condições e foi manifestamente incapaz de as pensar.
Basta ver, por exemplo, que não dispomos de um ensaio crítico que represente para os anos 80 algo de semelhante ao que o célebre ensaio de Eduardo Lourenço "Uma literatura desenvolta ou os filhos de Álvaro de Campos" representou em 1966 para o período de 1953 a 1963. O que houve de mais próximo de uma idéia crítica não passou de um logro: dizia-se, ou repetia-se, que afinal o romance não morrera, que estava pleno de vitalidade e que ficara provada a falsidade da antiga idéia que fazia os portugueses incapazes do romance por força da exacerbação do carácter lírico. Logro, não porque essa idéia persista válida, pois nunca o foi, mas porque abrigava a ilusão de que os portugueses tinham enfim atingido uma meta que não se movera um centímetro enquanto eles tardaram a lá chegar.
Por outras palavras, esses anos decorreram como se o romance não se tivesse alterado enquanto género literário específico e, em particular, como se não se tivesse também alterado o seu lugar e o seu desempenho na sociedade. Sob a pressão de uma realidade social em transformação, na seqüência de um período revolucionário que quase atingiu o delírio, a ficção portuguesa vergou ao peso da missão de testemunhar a mudança, de interrogar o passado, de iluminar o presente e de participar da construção do futuro, tudo propósitos muito louváveis, sem dúvida, não fosse a exclusão, que implicavam, da dimensão crítica, ou seja, a rasura da interrogação da possibilidade de o romance continuar o meio adequado a tão nobres missões e a conseqüente inconsciência da corrosão a que a noção de literatura foi sendo sujeita depois dos modernismos. Assim, se por um lado se assistiu ao culto inocente, celebrado as mais das vezes, do "regresso à narrativa", como se esta fosse uma modalidade intemporal, com conseqüente abandono ou mesmo repúdio da experimentação romanesca, o que permitiu que alguns novos escritores reduzissem o seu ideário literário à crença ingénua de que o papel histórico do romance é representar a realidade e fornecer versões alternativas da história, por outro lado, gerou-se a hipertrofia da problemática nacional, na ilusão de que se resolveria no romance e pelo romance um problema tão extenso e complexo como o dito da identidade nacional. Ora, o romance é um género autocrítico por condição, mas nisso perverso: a forma própria de não suportar a inconsciência crítica consiste precisamente na proliferação indiscriminada de romances. Aí está, em suma, um dos factores decisivos daquele surto invulgar de produção romanesca.
Paradoxalmente, o atrás referido Grande Prémio de Romance e Novela constituiu-se o melhor representante da capitulação da crítica. José Saramago, por exemplo, o mesmo que viria a ganhar o Nobel em 1998, foi quatro vezes preterido nesse prêmio: viria a ganhá-lo apenas em 1991, com O Evangelho segundo Jesus Cristo, numa altura em que o seu êxito internacional era irreversível, sobre esmagador. É irrelevante debater se os romances que venceram Memorial do convento, O ano da morte de Ricardo Reis, A jangada de pedra ou História do cerco de Lisboa eram melhores ou piores romances que estes: interessa, sim, sublinhar que, durante toda a década de 80, a crítica, com pouquíssimas excepções, paralisada perante o sucesso de um escritor relançado inusitadamente, não encontrou meios de lhe entender os livros, como se precisasse de mais tempo para assimilar uma radical novidade, o que até nem era o caso.
Mas o episódio realmente significativo, e que aliás marca a viragem da euforia para a disforia, ocorreu em 1989, quando da atribuição do prémio relativo a 1988. O júri, bem afinado pelo espírito eufórico do tempo, fazendo praça de um preocupante antiintelectualismo, recusou o prémio a um dos romances mais extraordinários da literatura. Mas nada disto foi causado por falta de talento, de inteligência, de competência ou sequer de comparência, pelo menos no que respeito aos críticos. Na verdade, aqueles anos 80 foram antes anos de inexorável mutação na instituição literária. A lógica industrial chegou ao mundo editorial e literário, o sucesso de livraria adquiriu um peso até aí desconhecido na edição e circulação das obras, o romance encontrou concorrentes mais fortes na tarefa de fornecer alternativas à história e ao quotidiano, a crítica literária perdeu o privilégio de instância de mediação entre os escritores e o público leitor. Essas transformações afectaram o panorama da literatura portuguesa e afectam-no ainda. Aliás, que diabo! foi o mundo que mudou: e perante isso, os termos respeitosos ou as celebrações levadas do orgulho nacional valem pouco.
Abel Barros Baptista é professor da Universidade Nova de Lisboa, diretor da revista portuguesa Colóquio-Letras, autor de Em nome do apelo do nome (Litoral Edições) e Autobibliografias (Relógio d'Água), entre outros.
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